História
Reverendo Ashbel Green Simonton, fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil
Primeira Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro.
O surgimento do presbiterianismo no Brasil resultou do trabalho missionário do americano Ashbel Green Simonton (1833-1867), que chegou ao Rio de Janeiro em 12 de agosto de 1859, aos 26 anos de idade. Em abril de 1860, Simonton dirigiu o seu primeiro culto em português; em janeiro de 1862 foi fundada a Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro. No breve período em que viveu no Brasil, Simonton, auxiliado por alguns colegas, fundou o primeiro jornal evangélico do país (Imprensa Evangélica, 1864), criou o primeiro presbitério (1865) e organizou um seminário (1867). O Rev. Simonton morreu vitimado pela febre amarela aos 34 anos, em 1867 (sua esposa, Helen Murdoch, havia falecido três anos antes).
Reverendo Belmiro César
O ex-padre José Manoel da Conceição (1822-1873), foi o primeiro brasileiro a ser ordenado ministro protestante, em 1865. Visitou incansavelmente dezenas de vilas e cidades no interior de São Paulo, Vale do Paraíba e sul de Minas, pregando e fundando comunidades. O ano de 1869 marca uma nova etapa na história da IPB por ser o ano da chegada dos missionários da Igreja Presbiteriana do sul dos Estados Unidos. Nesta época, em virtude dos problemas políticos enfrentados nos Estados Unidos, havia duas Igrejas Presbiterianas: uma do norte do país (a PCUSA) — que enviou os primeiros missionários ao Brasil — e outra no sul (a PCUS).
Os primeiros missionários da Igreja do sul dos Estados Unidos a vir para o Brasil foram George Nash Morton e Edward Lane. Seu trabalho concentrou-se no interior de São Paulo, tendo fundado, em 1870, a Igreja Presbiteriana de Campinas. As regiões da Mogiana, o oeste de Minas, o Triângulo Mineiro e o sul de Goiás foram atingidos por outros missionários que os seguiram, dentre eles o Rev. John Boyle.
A expansão da IPB no norte e no nordeste do país deve-se ao trabalho pioneiro dos missionários da PCUSA. Dentre os muitos nomes deste período fulguram o do missionário John Rockwell Smith, que fundou a Igreja Presbiteriana do Recife, em 1878, e o Rev. Belmiro de Araújo César, um dos primeiros e mais conhecidos pastores brasileiros do nordeste.
Durante este período, a missão da Igreja Presbiteriana do norte dos Estados Unidos (PCUSA) se consolidava no restante do país. Um dos grandes eventos deste período foi a fundação da Escola Americana, em 1870, por George Chamberlain e sua esposa, Mary Chamberlain. A Escola Americana, mais tarde, passaria a se chamar Mackenzie College, chegando a ser o conhecido Instituto Presbiteriano Mackenzie, que abriga, dentre outras instituições, a Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Alguns novos pastores pastores brasileiros são ordenados nesses anos, como Manuel Antônio de Menezes, Delfino dos Anjos Teixeira, José Zacarias de Miranda e Caetano Nogueira Júnior. Um dos grandes nomes, no entanto, viria a ser o do Rev. Eduardo Carlos Pereira, que se celebrizou por sua liderança, bem como por sua atuação no campo educaional, com a produção de livros didáticos, especialmente no campo da Gramática. Liderou o movimento de cisão, que cumulou-se, em julho de 1903, com o surgimento da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, a IPIB, filha da IPB.
Reverendo George Chamberlain
Em setembro de 1888 foi organizado o Sínodo da Igreja Presbiteriana do Brasil, assim tornou-se autônoma, desligando-se das igrejas norte-americanas.
Depois da Proclamação da República, nasceu um movimento nacionalista no seio da IPB, em que pastores brasileiros se manifestaram contrários à presença intesiva e intereferência de missionários americanos, gerando um cisma que levou à fundação da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Um grande líder do começo do século XX foi o pastor (?) Erasmo Braga. O presidente da república Café Filho era presbiteriano e frequentava a 1ª Igreja Presbiteriana de Natal [9]
Ao longo do século XX, surgiram outras igrejas congêneres que também se consideram herdeiras da tradição calvinista. São as seguintes, por ordem cronológica de organização: Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (1903), Igreja Presbiteriana Conservadora (1940), Igreja Presbiteriana Fundamentalista (1956), Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (1978).
A Igreja Presbiteriana do Brasil, ao ano de 2003, possuia aproximadamente 3.840 igrejas locais, excluindo-se as congregações, 263 presbitérios, 64 sínodos, 2.660 pastores, 503.500 adeptos - sendo 370.500 membros comungantes(que participam da Santa Ceia) e 133.000 membros não-comungantes-, estando presente em todos os estados da federação [10]. Segundo estimativa de 2008, a IPB possui 4.212 igrejas e 980.000 membros.[5]
O órgão oficial da IPB é o Jornal Brasil Presbiteriano.
Estrutura
O governo presbiteriano é uma forma de organização da Igreja que se caracteriza pelo governo de uma assembléia de presbíteros ou anciãos que são eleitos pela assembleia dos membros da igreja.
A função do ministério da Palavra de Deus e a administração dos sacramentos é ordinariamente atribuída a uma pessoa em cada congregação local, os chamados pastores, que são ministros do Evangelho, formados em Teologia (no nível de graduação em curso superior) e ordenados após rigoroso processo de exames.
A administração da ordenação e legislação está a cargo das assembléias de presbíteros, entre os quais os ministros e outros anciãos são participantes de igual importância, com algumas funções privativas aos pastores, como a ministração dos Sacramentos previstos na Bíblia: Batismo e Santa Ceia. Estas assembléias são chamadas concílios.
Os concílios da Igreja Presbiteriana do Brasil crescem em gradação hierárquica. Cada igreja local tem o seu concílio, chamado de Conselho, que se reune ordinariamente a cada dois meses. As igrejas de uma determinada região compõem um concílio maior chamado Presbitério, com assembleias anuais. Os Presbitérios, por sua vez, compõem um Sínodo, com reuniões ordinárias a cada dois anos. O concílio maior da Igreja Presbiteriana do Brasil é o Supremo Concílio, reunindo todos os Sínodos. Esta reúne-se, estatutariamente, a cada quatro anos, tendo sua Comissão Executiva a determinação legal de se reunir anualmente.
Cada igreja local se divide em departamentos que organizam as atividades de cada faixa etária: UCP (União de Crianças Presbiterianas), UPA (União Presbiteriana de Adolescentes), UMP (União de Mocidade Presbiteriana), UPH (União Presbiteriana dos Homens) e SAF (Sociedade Auxiliadora Feminina). Há outras sociedades que são criadas porém ainda sem oficilalização pela IPB.
Sínodos
Escultura representando a primeira santa ceia protestante no Brasil, em frente à Catedral Presbiteriana, no Rio de Janeiro.
Presidentes do Supremo Concílio da IPB
A IPB, sendo governada por sistema conciliar, não admite a personificação desse governo. Assim sendo, os nomes elencados abaixo não se caracterizam como presidentes da IPB e sim como presidentes do concílio maior que governou ou governa a Igreja em cada época.
Nos 150 anos da IPB feitos em 12/01/2012, passaram pela presidência de seu concílio maior 39 pastores e apenas 01 presbítero. Desde a sua criação até hoje, esse concílio maior teve quatro diferentes estruturas: Presbitério do Rio de Janeiro (1865 a 1887); Sínodo do Brasil (1888 a 1910); Assembléia Geral (1910 a 1942); e Supremo Concílio (1942 até hoje).
Presbitério do Rio de Janeiro (1865-1887)
Revendo Alexander Latimer Blackford, primeiro presidente do Presbitério do Rio de Janeiro e do Sínodo do Brasil
Sínodo do Brasil (1888-1910)
Assembléia Geral (1910-1942)
Supremo Concílio (1937- )
Missões
Autarquias
Educação
Muitas igrejas presbiterianas possúem instituições educativas, além das que são adminsitradas de forma central pela IPB, que seguem na lista abaixo:
A Igreja
por Eduardo Carlos Pereira
Publicado em O Púlpito Evangélico, 1ª parte em julho de 1891 e 2ª parte no mês seguinte do mesmo ano.
"E se tardar para que saibas como deves portar-te na Casa de Deus que é a Igrejado Deus vivo, coluna e firmamento da verdade" I Timóteo 3:15
Pondo de parte qualquer outra asserção do Apóstolo no texto, é meu intento, prezadosirmãos, indagar nesta hora alguma coisa sobre a natureza do Deus vivo, que afirma S. Pauloser a Casa de Deus, coluna e firmamento da verdade. Em face das idéias errôneas quesobre este ponto reinam em nossa sociedade e das tremendas conseqüências que delas setiram, a importância do assunto se recomenda por si mesma. Cristo prometeu estar com asua Igreja até a consumação dos séculos, e edificá-la sobre a rocha inabalável, de modo queas portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Diante dessas promessas importantes,ensina-se a nosso povo que a Igreja de Cristo é uma congregação visível a palpável depessoas contidas dentro de uma organização determinada, e que essas pessoas pelo simplesfato de estarem dentro dessa organização, são herdeiros das promessas, e porconseqüência, não podem errar, são coletivamente infalíveis. E quando a história mostraque em nome dessa Igreja infalível e com sua autoridade se tem praticado horrendascarnificinas e acendido milhares de fogueiras homicidas; e quando com as SantasEscrituras se provam que, sob essa autoridade que não podem errar, espalham hoje mesmoas doutrinas mais anticristãs, respondem: “Cale-se a ímpia história fementida, cale-se aorgulhosa razão ante a Santa Madre infalível!” Com tais preconceitos, a voz da Igreja, comoo disse alguém, torna-se uma espécie de cabeça de Medusa, que tem petrificado o bomsenso de muitos.No curto espaço desta hora só poderei apresentar-vos a verdadeira noção ou concepçãobíblica da Igreja, mostrando ao mesmo tempo o sentido em que as promessas se têmcumprido e se cumprirão. Procurarei evidenciar que a Igreja é um reino espiritual e, porconseqüência, não pode encerrar-se necessariamente nos limites materiais de umaorganização qualquer, e, si bem que não seja meu propósito refutar de uma maneira direta,neste momento, os erros mencionados, espero, todavia, que ante a representação da verdade, clara e simples, desmorone-se aos nossos olhos o soberbo edifício que tem levadoséculos a se construir sobre os alicerces levadiços da ignorância e indiferença religiosas. Abrindo o Novo Testamento encontramos em muitos lugares a palavra “Igreja”: o examedesses lugares é o meio mais fácil e seguro de chegarmos à compreensão daquilo que oEspírito Santo designa por essa palavra. S. Paulo, nas duas epístolas escritas aos cristãosda cidade de Corinto, projeta brilhantíssima luz sobre o sentido religioso da palavra“igreja”.Tão claras são as palavras do Apóstolo, que nos podem servir de chave segura para ainterpretação de todos os textos em que se encontra mesma palavra. Principiando, aprimeira palavra declara que ele a dirige a “Igreja de Deus que está em Corinto, aossantificados em Jesus Cristo, chamados santos com todos os que invocam o Nome de nossoSenhor Jesus Cristo”. É claro que o Apóstolo chama “Igreja de Deus” a reunião dossantificados em Jesus Cristo, dos que invocam com sinceridade o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, dos fiéis que, segundo a Escritura, são chamados santos. Este mesmo sentidomanifesta o Apóstolo claramente no primeiro versículo de sua segunda epístola aosCoríntios: “A Igreja de Deus que está em Corinto, e a todos os Santos, que há por toda a Acaia.” É, portanto, incontestável que nesses dois lugares entende Paulo por igreja, asociedade dos fiéis, a congregação dos santos. Um exame atencioso de todos os outroslugares levar-nos-á à conclusão de que este é o único sentido religioso em que a palavra éempregada. Esta significação apostólica da palavra “igreja” está de acordo com suaetimologia. Ela tem sua origem num coletivo grego –Ekklesiaque, por sua vez, deriva-sedum verbo Kaleo, que significa chamar denotando conseqüentemente a assembléia ousociedade daqueles que são eficazmente chamados por Deus. O profeta do Apocalipse tornabem saliente esse sentido quando declara no capítulo 17, versículo 14, que os que estãocom o Cordeiro de Deus “são os Chamados, os Escolhidos, e os Fiéis.” Assim a verdadeiraIgreja de nosso Senhor Jesus Cristo, aquela que é chamada a Esposa imaculada doCordeiro, é composta unicamente dos que são verdadeiramente chamados, dos escolhidos edos fiéis de todos os tempos e lugares. “Não sabeis vós” diz ainda S. Paulo à Igreja de Deusem Corinto, “que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus mora em vós?” (1 Co3:16). Afirmando a mesma sublime verdade escreve S. Pedro aos escolhidos de Deus quereceberam a santificação do Espírito para prestarem obediência a Deus e terem parte naaspersão do sangue de Jesus Cristo. A estes cristãos admoesta S. Pedro: “Chegai-vos paraele (Cristo), como para a pedra viva, que os homens tinham sim rejeitado, mas que Deusescolheu, e honrou; também sobre ela vós mesmos, como pedras vivas, sede edificados emcasa espiritual, em Sacerdócio Santo, para oferecer sacrifícios espirituais, que sejamaceitos a Deus por Jesus Cristo” (1 Pe 2:4,5).Todos estes ensinos das Escrituras vêm esclarecerem o nosso texto com refulgente luz: “A Casa de Deus vivo que é a Igreja do Deus vivo, a coluna e o firmamento da verdade” é, nãoresta a menor dúvida, diante do Novo Testamento, a congregação dos eleitos, dos verdadeiros fiéis.Conservando sempre a mesma compreensão, variam os apóstolos muitas vezes a extensãodo termo. Ora, o termo “igreja” designa congregação, ora particulares, ora a Igreja única,universal ou católica, que abrange no vasto seio maternal a universalidade dos verdadeirosfiéis, dos que estão na terra e dos que estão no céu.Essa Igreja universal é nas Escrituras representada por várias corporações designativas desua natureza, e relações com seu único chefe. É comparada a um templo, a uma casa, eneste caso Cristo é a pedra angular (Mt 16:18); Ef 2:20); a um corpo, e Cristo é cabeça (Ef 1:23); a uma esposa, e Cristo é o Esposo (Ap 21:3); a uma videira, e Cristo é o tronco quealimenta os galhos (Jô 15); a um rebanho, e Cristo é o Supremo Pastor. É também chamadoo Reino de Deus, que se divide em duas províncias, a Igreja Triunfante no Céu e a IgrejaMilitante na terra. Esse povo, esse reino, essa Igreja, reuniu sempre em si todos oscaracteres da verdadeira Igreja. Desde que seus membros são unicamente os convertidospela palavra da vida e pelo Espírito Santo, “os santificados em Jesus Cristo”, ela não podedeixar de ser uma santa, católica e apostólica. Uma – não na uniformidade monótona, ou noautomatismo estéril de uma liturgia pomposa; mas, na unidade maravilhosa de seus credos,na comunhão viva das doutrinas fundamentais do Cristianismo, na fraternidade cristã deseus membros: “santa” – não pelo calendário de nomes próprios canonizados pelo votofalibilíssimo de homens pretensiosos, mas, na santidade de suas doutrinas emanadasdiretamente de uma fonte pura – o Livro Sagrado da Revelação Divina, e na pureza de seusmembros; “católica” – não na universalidade de um cadáver, que realizando as profecias, estende os seus membros inertes entre todas as tribos, línguas e nações, mas porqueabrange a universalidade daqueles que em todos os tempos e lugares mantiveram-se firmesno único fundamento, cabeça e pedra angular, a saber, Cristo (At 4:11, Ef 3:20); apostólica– não na transmissão absurda de uma consciência apostólica através dos séculos, pelocontato manual, mas na sustentação diligente das doutrinas pregadas pelos santosapóstolos. A preservação desses caracteres através dos tempos, em um grupo de pessoasescolhidas, a despeito de todas as circunstâncias e falibilidade humana, só pode seratribuída à ação poderosa e sempre presente do Vigário de Cristo que é a terceira pessoada Santa Trindade. Graças à presença eficacíssima do Espírito Santo, a Igreja de Deus vivotem conservado em todas as idades seus títulos gloriosos, suas gloriosas prerrogativas, etem sido em todos os tempos coluna e firmamento da verdade, a luz do mundo e o sal daterra. A sua história é o testemunho constante do amor de Deus; sua conservação em todos ostempos, o monumento imperecível do seu poder. Um olhar rápido sobre seu passadoconfirmando o que tinha dito, ajudar-nos-á a compreender a natureza das promessas quelhe foram feitas. Logo depois da queda do homem separar a humanidade nos dois gruposque a dividem hoje – os filhos de Deus e os filhos dos homens na expressão de Gênesis. Aságuas do dilúvio exterminam os filhos dos homens, mas, sobre seu dorso imenso flutua na Arca de Noé a Igreja de Deus vivo, composta de oito pessoas. Manifesta-se a apostasia e nadescendência de Abraão é preservada a linhagem santa. Retirado do cativeiro do Egito essepovo de Deus é introduzido na terra da promissão. Aí estabelecido no reinado do ímpio Acabe, manifesta-se a apostasia em larga escala. A idolatria domina a Igreja: o ídolo de Baalparece divorciá-la completamente de seu Deus.Só um homem permanece de pé, procurando debalde em torno de si a Igreja de Deus: é oprofeta Elias. “Senhor, mataram os teus Profetas, derribaram os seus Altares: e eu fiqueisozinho, e eles me procuram tirar a vida” (Rm 11:3). Porém a resposta de Deus patenteia oengano do Profeta: “Eu reservei para mim sete mil homens que não dobraram seus joelhosdiante de Baal” (v. 4). Chegam, afinal, os dias gloriosos da última Dispensação. O Verbo sefez carne e “veio para o que era seu, e os seus não no receberam.” Os edificadoresrejeitaram a pedra angular, preciosa, que anunciará o Profeta (Is 26) dever ser posta emSião. O pontífice, e os sacerdotes, os levitas, a nação judaica, a Igreja quase que em peso,apostatou, rejeitando o Cabeça, renunciando solenemente a Jesus Cristo. Teria pelaprimeira vez desaparecida a Igreja do Deus vivo? Não, responde S. Paulo: “Do mesmo modoque no tempo de Elias, Deus, segundo sua graça, salvou a um pequeno número, que elereservou para si” (Rm 11:5).De seu Chefe recebe esse “pequeno número”, que era a Igreja de Deus, ordem de marcharé a conquista do mundo: “Ide por todo o mundo”. Durante 300 anos, sublevam-se contra aIgreja as forças tremendas das potências infernais. O dragão procura afogá-la num rio desangue (Ap 12:15), porém o sangue dos mártires é a semente da Igreja. Vendo a inutilidade da guerra franca, muda satanás de tática, e inaugura uma nova fase deluta, fase que dura até nossos dias. Cessaram as perseguições, sobre o trono imperial; noprincípio do 4º século, senta-se Constantino e declara-se protetor dos perseguidos.Manifesta-se a corrupção no seio da Igreja que se torna oficial. Desencadeiam-se sobre elaos ventos pestíferos da heresia: levanta-se Ário no ano 317 e nega a divindade de Cristo, e“o orbe todo gemeu”, diz S. Jerônimo, admirado de se ver ariano –ingemuit totus orbisterrarum, et Arianum se esse miratus est.
Reproduzia-se, portanto, o que já se tinha dado no tempo de Elias e dos Apóstolos: verificava-se no seio da Igreja a defecção em grande número; mas então, como em todos ostempos, cumpriam-se as promessas, manifestava-se a graça de Deus, na conservação de“um pequeno número” de testemunhas fiéis, oprimidas, é certo, mas possuidoras legítimasdas ricas e gloriosas prerrogativas da Igreja cristã.Soou, porém, a hora da derrota para a heresia triunfante de Ário; mas nem por isso deixousatanás a tentativa de eliminar da superfície da terra a Igreja do Deus vivo. Mistura aastúcia à violência, sobe aos púlpitos cristãos e anuncia aos povos, mergulhados em trevas,um cristianismo a pouco e pouco falsificado. Foi lento o novo trabalho da destruição; duroudo 4º século ao 16º.Mas, durante esse longo período, esse cristianismo bastardo e perseguidor aniquilou,porventura, o legítimo cristianismo? Foi de fato destruída a Igreja cristã? Não, porque ela éimperecível. Onde estava ela então? O Profeta do Apocalipse nos ajuda a descobrir seuesconderijo apontando-nos para o deserto. Aí, diz ele, foi-lhe preparado um lugar de retiroonde Deus a sustentaria por 1260 dias (Ap 12:6). Ajudados por estas indicações do Profeta, ser-nos-á mais ou menos fácil acompanhar,através das grandes agitações e catástrofes dos povos, a história dos grandes sofrimentos efidelidade da Igreja desde Constantino até a Reforma do século 16º
Mas, é crível que o cativeiro da Igreja cristã se prolongasse por tantos séculos, sem,entretanto, falharem as promessas de Cristo: A credulidade desse cativeiro ou dessaopressão secular não se firma só em fatos históricos irrefragáveis, mas em expressasprofecias. Anuncia S. Paulo claramente o desenvolvimento do mistério da iniqüidade, e,sossegando os Tessalonicenses aterrados pela próxima vinda do fim do mundo, diz o Apóstolo: “Não virá sem que antes venha a apostasia e se manifeste o homem do pecado, ofilho da perdição, aquele, que se opõe, e se eleva sobre tudo, que se chama Deus, ou que éadorado, de sorte que se assentará no Templo de Deus, ostentando-se como se fosse Deus”(2 Ts 2:3,4). Referindo-se sem dúvida a essa mesma “apostasia”, ensina S. Paulo queimportava serem os bispos e os diáconos esposos de uma só mulher e acrescenta: “Ora, oEspírito manifestamente diz, que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dandoouvidos a espíritos de erro e a doutrinas de demônios, que com hipocrisia falarão mentira, eque terão cauterizada sua consciência, que proibirão casarem-se, que se faça uso das viandas que Deus criou” (1 Tm 4:1-3). E o Profeta, nas visões do Apocalipse, escrevendosem dúvida a história futura da Igreja, fala-nos largamente nos capítulos 13 e 17, dessaapostasia a que se refere S. Paulo, e que já Daniel anunciara em visões bem significativas(Dn 7, Ap 13 e 17). Levantar-se-á, diz o Profeta, um poder, uma besta com sete cabeças,que o Anjo explica serem sete montes; sobre ela senta-se uma mulher, vestida de púrpura,tendo em sua mão uma taça de ouro cheia de abominação, de imundícia da sua prostituição.Essa mulher, diz o Anjo, é a grande cidade que reina sobre os reis da terra. A essa besta foi dado o poder de fazer guerra por 42 meses, 1260 dias, ou segundo os intérpretes, 1260anos, foi-lhe dado poder sobre toda tribo, língua e nação. E agora repare no que diz oProfeta no capítulo 8, versículo 7: “E foi-lhe concedido que fizesse guerra aos Santos, e queos vencesse.” Assim estava decretado nos impenetráveis conselhos do Todo Poderoso quese levantaria no seio da Igreja um poder apostato que venceria os santos, isto é, os fiéiscristãos, ou ainda a Igreja do Deus vivo por 1260 anos. Assim os fatos históricos vêmconfirmar as declarações do Profeta; estas declarações confirmadas pelos fatos vêmexplicar-nos a natureza das firmíssimas promessas feitas por Cristo à sua Igreja. Eleprometeu estar com ela até a consumação dos séculos, de modo que as portas dos infernos,isso é, (segundo o original grego, as portas de hades, que é a região dos mortos), as portasda sepultura, em suma, o poder da morte, que prevalece contra tudo, não prevaleceriacontra sua Igreja, não a extinguiria da face da terra. Jamais, enquanto houvesse mundo,fechar-se-iam as portas da sepultura sobre os cadáveres dos últimos de seus membros.O Senhor Jesus assegura, pois, nas suas promessas, não a infalibilidade de uma corporaçãodeterminada, muito menos o uso-fruto dessa infalibilidade como monopólio de uma classe;porém a perpetuidade de uma igreja na preservação graciosa e providencial de um certonúmero de fiéis.E aí estão dezenove séculos para atestarem a fidelidade de suas promessas. Em todos ostempos de grandes apostasias, constitui sempre a sua verdadeira Igreja, fiel depositário dasdoutrinas reveladas, coluna e firmamento da verdade. Nos dias de Noé, como nos dias de Abraão; no tempo de Elias, como no tempo dos Apóstolos; na época do arianismo, como nos1260 anos da supremacia do anticristo: houve sempre um grupo fiel, os 7000 que nãodobraram seus joelhos a Baal.
Eis a resposta que, com a Escritura e história na mão, podemos dar aos nossos adversários,que nos perguntam ironicamente: “Se a vossa igreja é a Igreja de Cristo, onde estava aIgreja de Cristo antes da Reforma?”. Desde os primeiros passos da grande apostasiaanunciada pelos Apóstolos e por Daniel, surgiram em todos os tempos, fiéis testemunhas da verdade, que não eram vozes isoladas, porém, antes, marcos históricos, que assinalam, naestrada dos séculos, a marca da Igreja do Deus vivente. Compulse a história eclesiástica e vereis em todo o período anterior à Reforma, grupos mais ou menos numerosos,perseguidos como hereges, sob nomes diversos, nomes que traduziam, em grande parte, aironia e desprezo de seus adversários. Lede os credos desses hereges, contra os quais seinvoca da espada secular horríveis morticínios, e reconhecereis, na constânciainquebrantável desses grupos mártires, a Igreja de Cristo servindo de coluna inabalável àspura verdades do Evangelho. Diante desses fatos históricos, diante dos Valdenses, Albigenses, Paulicianos, Hussitas, Wiclifitas, e muitos outros, perguntar-se-á ainda: “Se aIgreja de Roma não é a de Cristo, onde estava a Igreja de Cristo, antes de Lutero?” Poisbem, a resposta acaba de ser dada.Ela se acha no mesmo lugar em que já se tinha achado no tempo do ímpio Acabe, no tempode Anás e Caifás, no tempo dos sucessores de Constantino, que sustentaram a ferro e fogo aheresia ariana; ela tinha tomado o caminho do deserto e do exílio; ocultava-se nos vales doPiemonte e defendia-se nas regiões da Hungria, contra o jugo apóstata dos bisposprepotentes de Roma, e muitos de seus membros que não tinham logrado retirar-se paraesses esconderijos, morriam nas fogueiras inquisitórias ou gemiam no cativeiro dessa novaBabilônia, cujas muralhas derribaram os reformadores do século XVI.
Este relancear de olhos sobre a história da Igreja vem impor-nos uma verdade, jáimplicitamente contida na definição do termo Igreja. É que em nenhum tempo pode ohomem traçar com exatidão os limites da Igreja do Deus vivo sobre a terra, porque ospadrões materiais não podem servir de marcos ao Reino espiritual de Deus. Os ritosdiversos que separam as corporações visíveis, não podem limitar o espírito católico, nãopodem restringir a expansão espiritual do Reino de Deus. Esta verdade é diretamenteensinada por S. Paulo, no seguinte lugar: “Não é o judeu o que é manifestamente, nem écircuncisão o que se faz exteriormente na carne; mas é judeu o que é no interior: e acircuncisão do coração é no espírito, não segundo a letra: cujo louvor não vem dos homens,senão de Deus” (Rm 2:28,29). Ensina, pois, o Apóstolo que a circuncisão, que era umsacramento da Igreja antes de Cristo, e, conseguintemente, todas as cerimônias por Deusprescritas, mesmo quando observadas regularmente, não davam por si só o direito a um judeu de ser verdadeiramente um israelita, um filho de Abraão. Era necessário mais do queessas exterioridades, era necessário um coração crente e um espírito reto. Esta verdade éde uma aplicação intuitiva em todos os tempos. Os sacramentos e a organização exterior daIgreja são como que a cabeça: a fé verdadeira, a caridade sincera, eis propriamente o fruto.O homem vê o exterior, enxerga os atos e presume a fé e a caridade. Deus, porém, antes de ver a aparência sonda os corações. Finalmente não podemos traçar com exatidão a linhadivisória que separa a Igreja de Deus do resto dos homens, visto que as qualidadesespirituais para ser-se membro dessa Igreja – a fé, o arrependimento, a caridade, acircuncisão do coração – escapam à nossa limitada intenção. Por isso declara S. Paulo: “Ofundamento de Deus tem este selo: - o Senhor conhece os que são dele: aparte-se dainiqüidade os que invocam o nome do Senhor.”É pois de necessidade que se faça uma distinção entre a igreja interior e a exterior, entre aigreja vista pelos olhos infalíveis de Deus e a contemplada pelos olhos falíveis dos homens –entre Igreja invisível e Igreja visível
É a Igreja invisível, composta unicamente dos santificados em Jesus Cristo, dos que emtodos os países invocam com sinceridade o nome do Senhor, é a ela unicamente quepertencem as gloriosas promessas do Evangelho: as ricas esperanças de seus membros nãose firmam nem em Pedro nem em Paulo, mas na Rocha inabalável confessada por Pedro e eanunciada pelo Profeta (Is 28:16) “Cristo o Filho de Deus Vivo”.Porém, a Igreja de Deus, como vos disse, apresenta-se a nossos olhos, sob um aspecto visível, isto é, como uma vasta associação, que tem atravessado os tempos estendendo-sesobre todos os países. Na sua organização exterior esta vasta sociedade dos fiéis apresentanão só no tempo, mas também no espaço um aspecto múltiplo. A Igreja como um todo, tem, no tempo, assumido três formas fundamentais: a Igrejapatriarcal, a Igreja mosaica ou levítica, e a Igreja cristã. Cada uma destas formas écaracterizada por um aspecto exterior bem distinto. Mas, porventura, não é uma só emesma igreja, que varia de aspecto, reveste formas diversas, segundo as circunstâncias detempo e lugar?Entre os diversos símiles ou comparações por que é representada na Santa Escritura aIgreja de Deus, há um que nos pode servir de ilustração apropriada. S. Paulo a compara nocapítulo 9 dos Romanos a uma oliveira. Os judeus comparam os Apóstolos aos ramosnaturais, e as igrejas particulares organizadas no mundo gentílico, a galhos de zambujeiroenxertados na oliveira sagrada. Uma árvore traz, com efeito, a idéia de um conjunto degalhos e ramos diferenciados pela distância e aparência, muitos dos quais não se ligam para descobrir, nessa imensa variedade, perfeita semelhança ou unidade. Assim a Igrejaque naturalmente tinha um aspecto uniforme nas dispensações patriarcal e levítica, porquecompreendia uma só família e um só povo, necessariamente assumiria um aspecto variadodesde que abrangesse todas as famílias e povos da terra. É pois natural que nestadispensação cristã, essencialmente universal, ela realize plenamente o símile do Apóstolo.Diante destas considerações tornam-se evidentes as judiciosas observações de um autor,tendentes a demonstrar que sob a nova economia, a Igreja deve organizar-se exteriormentesegundo a sabedoria e prudência de seus membros, tendo em vista seus fins e os princípiosdo Evangelho. Ora, como esta sabedoria e prudência variam necessariamente, a variedadeno aspecto da organização externa é uma conseqüência natural da liberdade. Com efeito,não há uma forma exterior por Deus imposta à Igreja Cristã. Sob a Velha Dispensação, há olivro de Levítico prescrevendo à igreja judaica, com minuciosa exatidão. Todos os ritos,cerimônias, governo, disciplina.O Novo Testamento declara na epístola aos Hebreus que toda esta organização exterior doculto judaico. Todo esse “jugo de escravidão”, na expressão de S. Paulo, foi abolido – “eramsombras de bens vindouros, eram figuras postas até o tempo da reforma” (Hb 10:1,9,10).Onde está no Novo Testamento o livro que preserve os ritos que deviam substituir ocerimonial levítico? Não existe. O Novo Testamento contrariamente do Velho ocupa-semuito com a essência ou doutrina e pouco com a forma. Respondendo a perguntas da Igrejade Corinto sobre certas cerimônias e costumes, S. Paulo indica o livro que os cristãosdevem consultar sobre essas coisas secundárias que não se acham reveladas no NovoTestamento: “Julgai lá vós mesmos” “nem a natureza vo-lo ensina” diz em 1 Co 11:13,14;13:26,40). Os ritualistas de hoje se escandalizam com semelhante liberdade, mas seusantecessores nos tempos apostólico, já tiveram do ilustre Apóstolo dos Gentios, dignaresposta quando este declarou-lhes que não vivemos mais debaixo de tutores e curadores,por termos no “Ministério do Espírito”, na dispensação cristã, atingido a nossa maioridadeespiritual.De fato, o regime da liberdade pode ser abusado pelos sérios efeitos do jugo da escravidão,pelos menores que não têm bastante natureza para dispensar tutela: nunca pelos quegozam da liberdade dos Filhos de Deus, dos que têm alcançado a maioridade na plena luz eardente caridade do Evangelho.
No gozo desta liberdade, foram os apóstolos e discípulos em cumprimento da ordemrecebida, fundando igrejas ou comunidades particulares entre todos os povos. É assim queo Novo Testamento fala-nos de igrejas organizadas em Jerusalém, Antioquia, Éfeso, Roma,etc. Nenhuma dessas igrejas era mãe e senhora das outras. Isto é ponto incontroverso paraquem lê o Novo Testamento, ou a história da Igreja Primitiva. Jerusalém não recebia ordens da igreja de Roma; Roma, por sua vez, era independente dasoutras igrejas. Cada uma dessas igrejas era um organismo particular, autônomo, unido aosoutros pelo laço áureo da caridade e profunda simpatia fraterna, fomentado pela identidadedas crenças emanadas de um Código comum, cuja autoridade infalível todos reconhecem.Eram repúblicas confederadas, cujos pontos controversos se decidiam em assembléias ouconcílios de seus pastores chamados bispos ou presbíteros.Quanto à organização externa, quanto à hierarquia eclesiástica e disciplina dessas diversasrepúblicas ou congregações, na parte em que não havia recomendações expressas servianaturalmente de norma segura o exemplo ou a práxis apostólica. Os mesmos Apóstolos, reconhecendo a liberdade nestas coisas secundárias, permitiam certa diversidade noaspecto exterior das diversas igrejas. É assim que, permitindo às igrejas da Judéiaconservarem certos costumes ou cerimônias da Lei mosaica, proibiam, todavia, imporemcertas cerimônias às igrejas dos gentios, que tinham outros costumes mais adaptados aocaráter delas (At 15:20-27). Circunstâncias incidentais foram, com o correr dos tempos,traçando linhas divisórias, cada vez mais visíveis, na forma exterior dessas igrejasseparadas pela distância, pelas raças e costumes sociais. Mas, essas diferenças que seacentuavam cada vez mais, eram o fruto natural da liberdade e o produto espontâneo daatividade inteira. Assim hoje as mesmas coisas devem produzir os mesmos efeitos. Em todos os países ecidades em que os cristãos invocam com sinceridade o nome do Senhor, eles se congregampara o culto divino e administração dos sacramentos. Essas congregações, organizando-seregularmente, sob influência da atividade e liberdade cristãs, hão de forçosamente divergir,em sua organização externa, de outras corporações congêneres. Desde que não temos umlivro de Levítico, nem mesmo um capítulo do Novo Testamento prescrevendo diretamenteuma liturgia ou mesmo uma determinada forma de governo à Igreja Cristã, é evidente que otemperamento, a diversidade do meio e educação social, os modos diversos por que oespírito humano encara a mesma verdade, são coisas que mui naturalmente atuam de modoa produzir a diversidade ou variedade na forma exterior das corporações cristãs.Para evitar essa diversidade era necessário mutilar-se o cristianismo, abolindo aquilo que justamente caracteriza a última fase da Igreja sobre a terra – a liberdade. Para que isso seefetuasse, era preciso que, nos impenetráveis decretos de Deus, uma dessas igrejasparticulares, ensoberbecendo-se, tivesse a sacrílega audácia de se proclamar – “mãe esenhora” de suas irmãs. Depois, sob pena de excomunhão, procuraria impor sua liturgia,sua forma exterior às igreja do Oriente e do Ocidente. Porém, na evolução natural dascoisas humanas, um abismo chama outro abismo, e essa igreja, ensoberbecendo-se,sentir-lhe-ia crescer a ambição na embriaguez dos primeiros triunfos. De particulartornar-se-ia universal ou católica, de falível, infalível. A simplicidade evangélica da Igreja Primitiva foi perdida na engrenagem complicada depompas luxuosas de uma cleresia aristocrática. E não contente em mutilar exteriormente ocristianismo, ela estenderia mão profana sobre a essência, ou sobre o corpo doutrinário enovos dogmas ir-se-iam agregando ao credo dos Apóstolos. Porém, no dia em que essaigreja particular começasse a assassinar moral e espiritualmente suas irmãs, nesse dia amão da Justiça divina cortaria esse ramo da árvore do cristianismo, e ela, como Caim, sairiada presença de Deus levando em sua fronte entre todas as tribos, línguas e nações aspalavras que já o Profeta lera, nas visões apocalípticas: “Mistério: a grande Babilônia, amãe das prostituições e abominações da terra” (Ap 17:5).E coisa por certo admirável, meus ouvintes, é que estas oposições sejam não somente fatoshistóricos, mas previsões proféticas. Lançando um olhar retrospectivo sobre a Igrejafalei-vos de um período de 1260 anos em que ela devia ser vencida, porém, não aniquilada.Não me refiro agora a essas predições, mas a um pressentimento profético do grande Apóstolo dos gentios que tem de certo com eles relações íntimas e que é bem significativosobre o ponto que nos ocupa. S. Paulo, como sabeis, escreveu nove cartas, que constam noNovo Testamento, a igrejas particulares. Entre estas existe uma dirigida à igreja particularde Roma. No capítulo nove dirigi-lhes S. Paulo, com os olhos do futuro, uma soleneadmoestação: declara-lhe que os ramos judaicos foram cortados da oliveira santa por causa da sua incredulidade, e que ela, igreja de Roma, fora enxertada para ser um ramo dessaoliveira. Pois bem – acrescenta o Apóstolo, versículos 20 a 22 - não te ensoberbeças, masteme, porque se não permaneceres na benignidade de Deus, também tu serás cortado.Coisa singular! Realizaram-se os pressentimentos do Apóstolo: o galho do zambujeiroenxertado quis ser a árvores, e ameaçou cortar todo o ramo que não declarasse ser ela aoliveira santa. Deus, porém, executou a sentença, e o galho do romanismo foi cortado daárvores cristã, realizando a grade apostasia de que fala S. Paulo aos Tessalonicenses (2 Ts2:3, 1 Tm 4:1,2).Os membros da verdadeira igreja católica, que rejeitaram o jugo de Roma, usando daliberdade evangélica nas coisas que o Espírito Santo deixou ao critério de sua fé e caridade,amoldam os princípios de governo, disciplina e liturgia, de sua natureza variáveis, a seuponto de vista peculiar; e, retendo sempre o plano evangélico da salvação, e essência divinada religião cristã, encaram diversamente certas verdades secundárias sobre apredestinação e sobre a forma e tempo do batismo. Essas divergências secundárias, sob oinfluxo da atividade pujante do cristianismo, dão origem à formação das diversasdenominações irmãs ou igrejas particulares que se chamam – luterana, anglicana,metodista, batista, congregacionalista, prebiteriana. Cada um desses nomes, porém,significa uma força na grandiosa liberdade do cristianismo: são galhos da mesma oliveiraque realizam plenamente a comparação do Apóstolo: separam-se na diversidade daaparência; ligam-se, porém, na unidade da árvore; unem-se no mesmo tronco ealimentam-se do suco da mesma raiz.Se, em alguma coisa, esses grupos diversos denotam a estreiteza e fraqueza inerentes aoespírito humano, em não poder contemplar uma verdade do mesmo modo e com a mesmaclareza, ou aplicar um princípio com a mesma exatidão: em outras, revelam que o espíritoativo e livre do cristianismo não morreu. Ali, pois, onde o observador prevenido só enxergaimperfeição, o observador imparcial descobre a liberdade! E coisa admirável! Esses frutosdiversos da contingência humana, se assim o quisermos considerar, revertem em grandebem para a igreja em geral! Essas corporações diversas no seio da vasta corporação cristãdão origem a uma emulação vigilante (Hb 10:24) que, temperada pela caridade, produz osmaravilhosos resultados que, gratos, contemplamos em nossos dias. Louvemos a Deustirando o louvor perfeito da boca dos que mamam!Desgraçadamente em todas as harmonias humanas soa sempre a nota discordante. Nessascorporações particulares há muitos membros indignos: eles fazem parte da igreja visível,mas falta-lhes inteiramente os títulos para serem membros da igreja invisível. Um olharatencioso descobre às vezes em uma árvores frondosa certas folhas que não pertencem àárvore, mas a certa erva parasita, que oculta facilmente sua natureza a um observadorinexperiente. Esses membros são os parasitas das igrejas. Debaixo deste ponto de vista,compara S. Paulo a Igreja a uma grande casa onde há vasos de honra e de desonra (2 Tm2:20), e nosso Divino Mestre, a um campo onde ao lado do trigo cresce a cizânia (Mt 13).Esse elemento hipócrita no seio das congregações, coadjuvado pelo fanatismo, lamentávelfruto da estreiteza de nossas inteligências, tem infelizmente muitas vezes convertido essanobre emulação em uma sabedoria terrena, animal, diabólica (Tg 3:15), em um zelo amargoe orgulho sectário. Estas coisas, porém, são inevitáveis. Nosso Senhor a declara naparábola do campo e da cizânia, e também quando diz: “É necessário que haja escândalos”.Do que ficou dito é fácil concluir-se que essas igrejas independentes, cuja totalidadeconstitui a Igreja católica, essas organizações autônomas, várias na forma e idêntica no fundo, têm plena razão de ser nas leis naturais do espírito humano, e plena sanção naliberdade do Evangelho. É na esfera religiosa a aplicação da lei da variedade no seio daunidade, lei que faz ressaltar por toda a parte na criação a beleza e sabedoria de Deus. A diversidade exterior da Igreja visível é, portanto, a manifestação livre e característica desua atividade católica, e diante desta verdade solidamente estabelecida pelo fato de nãohaver preceito sobre a forma e a ordem das cerimônias do culto externo, nem mesmoprescrições positivas sobre o governo eclesiástico, oferece um interesse secundário oindagar-se qual das formas existentes é a melhor. Talvez que fosse mais edificanteperguntar-se qual dessas igrejas irmãs, ou ramos cristãos, é a mais excelente? É ametodista? A batista? A presbiteriana ou a congregacionalista? A resposta é fácil em tese.Qual dos galhos da árvore frutífera é o mais estimável? É aquele que sustenta com maissimetria seus ramos, ou aquele que projeto sobre o solo uma sombra mais vasta? Não, é oque mais se carrega de frutos. Pois bem, a melhor de todas essas comunidades autônomasno seio do cristianismo não é aquela com maior número de membros, nem maior soma naarca de seus tesouros, nem maior regularidade nas formas litúrgicas ou disciplinares; mas,sim, aquela em cujo seio há mais piedade e consagração ao Mestre, maior número demembros pertencentes à Igreja invisível; aquela que produz em maior quantidade o frutosaboroso do cristianismo – a caridade evangélica.Seja-me permitido, meus irmãos, ao concluir, tirar do que tenho dito algumas consideraçõespráticas. A verdadeira Igreja do Deus vivo, composta dos santificados em Jesus Cristo, tem sidoatravés dos séculos a coluna firmíssima da verdade revelada nas Sagradas Escrituras. A suaindefectibilidade lhe tem sido garantida peal eleição do Pai, pela intercessão do Filho seuúnico Chefe, e pela assistência poderosíssima do Espírito Santo, único Vigário de Cristosobre a terra. Mas é bom lembrarmo-nos que a perpetuidade da árvore não quer dizerestabilidade perpétua do galho e muito menos das ervas parasitas que enroscam em seusgalhos. A história da Igreja no tempo de Elias, a severidade de Deus para com os ramos judaicos, e, sobretudo, a solene admoestação dirigida por S. Paulo à igreja de Roma, devemtrazer a salutar advertência a nós igrejas particulares de uma cidade, que constituímos osramos, a nós organizações mais vastas, que formamos os galhos da Oliveira. Para quetenhamos direito de fazer para, aos olhos de Deus, da árvores do cristianismo, não bastaconservarmos em nossos credos a ortodoxia das doutrinas; é indispensável mantermos emnossa prática a ortodoxia dos sentimentos.“Eu tenho contra ti – diz o Senhor à igreja de Éfeso – que deixaste tua primeira caridade”(Ap 3:5). Se somos zelosos em cortar os membros que apregoam doutrinas heterodoxas,imitemos particularmente ao Senhor, dobremos esse zelo em lançar fora de nossacomunhão os que, perdendo a sua caridade, que é a vida divina da Igreja, mostram um zeloamargo, um espírito de seita, que é a morte dessa vida no seio de nossas comunidades. É nodomínio da liberdade que se ostenta plenamente a índole celeste da imortal caridade.Quando outras razões não houvesse, pois, para essa diversidade exterior do cristianismo,seria razão aceitável o dar ela excelente oportunidade à tolerância evangélica, a essa virtude “que não ensoberbece, que não busca seus próprios interesses e que tudo tolera” –se há uma verdade que acima das outras deva ser mantida por essa “coluna e firmamentoda verdade”, é, meus irmãos, a caridade fraternal que só pode realizar sobre a terra aconcepção bíblica da Igreja. “Se amamos uns aos outros”, diz S. João, “Deus permanece emnós”. É, portanto, pelo amor da irmandade que podemos realizar a verdade de nosso texto,que nos pode constituir a “Casa de Deus”. Em face, pois, da natureza da Igreja de Deus,quase odiosa é a estreita intolerância, e abominável orgulho e egoísmo sectários, que seinsurgem aqui e ali – pouco importa onde – contra a fraternidade evangélica, princípioconservador da unidade cristã! Presbiterianos, metodistas, batistas, anglicanos,congregacionalistas, mostremos na vasta República do Brasil que o regime da liberdade é a vida fecunda da Igreja Cristã; amortizemos a malevolência caluniosa de nossos inimigos,patenteando-lhes que em laço áureo, santo, indissolúvel nos une na comunhão dos dogmasessenciais do cristianismo, no seio natural da verdadeira Igreja católica e apostólica – é o vínculo da perfeição, último mandamento de Cristo, sinal distintivo de seus discípulos – é oamor intenso da irmandade, é a caridade fraterna
Fundação da Igreja Presbiteriana e Construção do Cemitério de Protestantes de Cachoeira – Bahia
Breve Relato Histórico Sobre a Fundação da Igreja Presbiteriana e Construção do Cemitério de Protestantes de Cachoeira – Bahia Luiz Cláudio Dias do Nascimento
Para o pastor Gevaldo Simões, aquem agradeço pelas importantes informações históricas. Quero mais!
Para a comunidade presbiteriana de Cachoeira.
A partir de 1860, europeus provenientes da Inglaterra, Alemanha e Suíça, de orientação religiosa luterana e calvinista principalmente, chegaram ao Recôncavo baiano, motivados com a implantação da Tram Road of Paraguaçu – Estrada de Ferro do Paraguaçu - e com a industrialização e manufatura de fumos. Nessa época, a cidade de Cachoeira experimentava um momento de significativas tensões sociais em torno da abolição da escravatura, e também como uma cidade onde ocorria um expressivo processo de consolidação de expansão urbano-industrial, iniciado naquele século, que refletiria na sua definição e modernização espacial. O processo de industrialização e modernização, no entanto, teria conseqüências: ele coagiria a população pobre e negra a se agruparem em núcleos residenciais em zonas recuadas das zonas formais de expansão urbana.
Isto refletiria no afastamento do escravo e do liberto das zonas centrais e tradicionalmente habitadas pelos estratos superiores da sociedade local para as zonas marginais da cidade, fenômeno que vinha acontecendo desde o momento em que intensificou o processo de expansão da então vila, no final do século XVIII. O mais importante núcleo residencial negro de Cachoeira ficava localizado numa zona denominada Recuada. Nesse núcleo surgiram quatro agrupamentos (arruados). Eram eles: Curral Velho, Corta-jaca, Galinheiro e Bitedô. O Corta-jaca (depois denominado Rua de Belchior e atualmente a Rua e Largo dos Remédios) situava-se à margem do riacho Pitanga e distava, aproximadamente, 300 metros lineares da Rua da Ponte Velha (atualmente Rua 13 de março) , divisando, aliás, com um pequeno sítio onde se plantavam hortaliças e legumes. Era o agrupamento que fazia fronteira com a área urbana formal. Curral Velho (hoje Praça Marechal Deodoro) era o matadouro público, ligado ao Corta-jaca pela Rua do Rosarinho (atualmente Rua Alberto Rabelo) e à área formal pelas ruas da Faísca e Lama O agrupamento do Galinheiro localizava-se contíguo ao Corta-jaca, separado por uma praça que margeava o riacho Soberbo (hoje canalizado); era um arruado incrustado no sopé do morro Bitedô, que lhe servia de bastião.
Já o Bitedô era muito complexo. Tratava-se de um morro íngreme localizado a cavaleiro desses dois primeiros núcleos citados. Pela sua altura era possível ter uma visão panorâmica de toda a área urbana, inclusive de parte do Rio Paraguaçu. Junto ao morro Bitedô, numa depressão, formava-se outro morro muito maior, conhecido por Capapina. As terras da zona da Recuada pertenciam no início do século XIX a José Antônio Fiúza da Silveira e Souza. Antes do seu falecimento, parte dessas terras foi por ele vendida e doada para construção de igrejas, cemitérios e construção de casas, estas mediante pagamento de foros. O processo de urbanização que originaria o núcleo africano da Recuada teve início em meados da década de 1830.
Em 1841 a Câmara de Cachoeira designou o Pedreiro da municipalidade, José Marinho Falcão, a proceder-se a vistoria e alinhamento requerido por José Antonio Fiúza da Silveira e Souza, em uma porção de terreno baldio, de que o suplicante é proprietário, sito na mencionada rua da Pitanga, afim de nela levantar casas, e sendo aí foi feito pelo suplicante apresentado a Camara o dito terreno pedindo que lhe mandasse alinhar da quina da casa de Claudina Maria da Silveira a findar quase no morro que fica em direção a rua do [largo do] Remédio . No dia 15 de janeiro de 1853, o referido José Antônio Fiúza da Silveira envia oficio à Câmara de Cachoeira, dizendo que: Sendo proprietário dos terrenos místicos [mistos, vizinhos] a Igreja Nova denominada Capella do Rosário [igreja dos nagôs], no alto por detrás do antigo curral, que inda se achão aqueles terrenos sem conveniente alinhamento para os arruamentos e como já tinha o supplicante adquirido pessoas que quisessem edificar suas propriedades nos mencionados terrenos não podendo o suplicante dar arruamento sem que V.V.S.S vim ao indicado lugar juntamente o pedreiro desta Camara para fazer o mencionado arruamento tanto para aformosiação desta cidade como para sentença publica . Fiúza se referia no seu ofício à Câmara, não aos terrenos à colina onde em 1842 havia sido erigida a mencionada Capela do Rosário, e sim às terras do antigo curral (atualmente a Praça Marechal Deodoro), e adjacências (Corta-Jaca, Galinheiro e Bitedô). Baseado em outro documento datado de 1839, o curral e matadouro haviam sido deslocados para outra zona, em terras de sua propriedade, atualmente denominada Avenida São Diogo .
Em 1858, as terras que hoje compreendem a Praça Augusto Régis (antigo Rua do Moinho), incluindo o morro Bitedô (atualmente Alto do Cruzeiro ou Manoel Vitório) e Rua 28 de Junho (antiga Rua do Cemitério) e Rua Stela, foram compradas por José Joaquim d’Oliveira. Consta no livro de registro de terras de Cachoeira de 1858 que: José Joaquim d’Oliveira, morador n’esta Freguesia, possue uma sorte de terras no rio Pitanga d’esta cidade, que as houve pôr compra a José Antonio Fiúsa da Silveira, e se divide com as do vendedor pelo outeiro fronteiro [Bitedô] ao Moinho até seu cúme; deste a estrada que vai do simiterio para Belém [ladeira que sobe para o Bitedô], por esta até encontrar com terras de Francisco Fernandes da Costa, dividindo-se com este até o Rio Pitanga com Domingos Joaquim de Vasconcellos com Domingos Moreira, com Alberto Teixeira Guedes, com José Caetano Alvim, e com Antonio Moreira Barreto, conforme escritura. Cachoeira, 28 de julho de 1858. O Vigário Dionísio Borges de Carvalho. Desde a década de 1840 a Recuada se caracterizava também como zona agrícola e industrial.
Em 1838, Manoel Vasconcelos de Souza Bahiana fundava em Cachoeira a segunda fábrica de rapé da Província na localidade do Pitanga, próximo ao morro Bitedô, que aparece no documento acima citado Domingos Joaquim de Vasconcellos. Em 1870 a propriedade foi vendida ao italiano Jaccomim Vaccarezza, que, além de preservar a fábrica de fumos, se estabeleceu também com uma serraria e fábricas de pequenas e elegantes caixas de madeira utilizadas para acondicionamento de charutos e cigarrilhas. Em 1860, uma iniciativa do vereador José Ruy Dias d’Affonseca, foi aprovada em Câmara a implantação de uma ferrovia ligando Cachoeira a Feira de Santana. A Lei número 124, de 16 de junho de 1865, autorizou o início das obras da Tram Road of Paraguaçu, Estrada de Ferro do Paraguaçu, depois Brazilian Imperial Central da Bahia Railway, Imperial Estrada de Ferro Brasileira Central da Bahia. A implantação da ferrovia em Cachoeira ocorreu no momento em que europeus de variadas nacionalidades chegavam a Cachoeira como técnicos especializados empregados na ferrovia, ferreiros, artífices e como comerciantes. Na década de 1870, Cachoeira absorveu significativo número de capitalistas alemães provenientes principalmente de Bremen e Hamburgo, que investem na cultura e manufatura do fumo. Esse novo segmento social contribuiria para a definição espacial da área urbana de Cachoeira, que expandia com maior intensidade nesse momento para os espaços do antigo rossio . Contribuiriam também para introduzir novos hábitos e idéias científicas. Cachoeira em meados do século XIX inaugurava salas de vistas (como eram denominadas as salas de cinema), teatro, clubes sociais, tal como o Clube dos Alemães, este na outra parte de cidade, atualmente São Felix, e o pensamento da sociologia de Herbert Spencer circulava através de extensos artigos publicados nos semanários locais.
Evidentemente, a zona fumageira do Recôncavo baiano não abrigou uma colônia alemã como ocorreu no Sul do país. Entretanto, um número significativo de famílias de europeus de variadas nacionalidades (ingleses, alemães e suíços) e, como já foi mencionado, de orientação religiosa protestante (mormente presbiterianos e luteranos), fixaram residência em Cachoeira e São Felix nesse momento. A presença de protestantes ensejou evidentemente a fundação da Igreja Presbiteriana e, consequentemente, a construção do Cemitério de Protestantes.
Fundação da Igreja Presbiteriana de Cachoeira
Segundo o historiador e pastor da Igreja Presbiteriana, Gevaldo Simões, “a Igreja Presbiteriana de Cachoeira foi fundada no dia 12 de setembro de 1875 , com apenas três membros comungantes: os reverendos. James Theodore Houston, Francis Joseph e Christopher Schneider”. De acordo com o historiador Gevaldo Simões, os mencionados reverendos chegaram ao Brasil entre as décadas de 1860 e 1870, filiando-se ao Presbitério do Rio de Janeiro. Schneider, o terceiro missionário presbiteriano vindo para o Brasil em 1861, transferiu-se do Rio de Janeiro para a Bahia em fevereiro de 1871, fixando residência em Salvador, tendo organizado a igreja presbiteriana soteropolitana no dia 21 de abril de 1872. Houston chegou à Bahia, vindo dos Estados Unidos, no final de 1874, a fim de colaborar com Schneider no seu ministério religioso, transferindo-se para a cidade de Cachoeira no dia 31 de dezembro daquele mesmo ano de 1874, permanecendo nessa cidade até 1877, quando se transferiu para o Rio de Janeiro.
De 1877 a 1880, o templo presbiteriano de Cachoeira esteve sob os cuidados do Rev. Robert Lenington. A partir daí, assumiu o cargo de pastor o reverendo. Alexander L. Blackford, o segundo presbiteriano europeu a chegar ao Brasil com função missionária. De 1884 a 1886, Blackford foi auxiliado no campo baiano por Jonh Benjamin Kolb, que em seguida transferiu-se para Sergipe. Em 1891 a 1892 assumiu a liderança religiosa o reverendo Woodward E. Finley, e Edgard M. Pinkerton, que foram sucedidos de 1892 até 1902 pelo pastor George Whitehill Chamberlain, que residiu em Salvador, Feira de Santana, Cachoeira e São Félix, viajando extensamente pelo interior.
Entre 1902 e 1905, residiu em Cachoeira o Rev. William Alfred Waddell, genro de Chamberlain. Em 1906 a família Waddell seguiu para a Chapada Diamantina, onde fundou o famoso Instituto Ponte Nova, nome certamente inspirado na rua onde estava sendo construído o templo presbiteriano de cachoeira. Nessa época também trabalhou na Igreja de Cachoeira o pastor Pierce Chamberlain, filho de George Chamberlain. A partir de 1903 assumiu o pastor Henry John McCall, que também trabalhou em Muritiba, Feira de Santana, São Gonçalo dos Campos e outros locais pertencentes à jurisdição de Cachoeira onde residiam alemães ligadoa à plantação e exportação de tabaco. Nessa época, sete membros da igreja mudaram-se para Canavieiras, organizando a igreja presbiteriana naquela cidade no dia 26 de setembro de 1906. A seguir, a Igreja de Cachoeira teve o seu primeiro pastor brasileiro, o Rev. José Ozias Gonçalves (1906-1908). Ele reconstruiu o templo, que havia sido destruído por uma inundação. Sua esposa, Nefália, fundou um clube recreativo lítero-musical. No dia 7 de janeiro de 1907 foi organizado o Presbitério da Bahia e Sergipe, do qual o Rev. José Ozias foi o primeiro moderador.
No referido livro de atas da igreja presbiteriana de Cachoeira, referente ao período de 1875 a 1902, encontra-se anexado um folheto com o programa da “cerimônia da Casa de Oração à Rua da Ponte Nova”, com data de 7 de setembro de 1901. No ano de 1901 foi conseguida junto à então intendência municipal a doação de um terreno à margem do Rio Paraguaçu, na Rua Ponte Nova, tendo sido lançada em 7 de setembro de 1901 a pedra fundamental do templo. Em 1903 o templo foi concluído. O edifício que ainda conserva as mesmas características na sua fachada foi construído com um jardim gradeado com ferro batido e fundido. O pastor que coordenou a construção foi o Rev. George W. Chamberlain, que veio a falecer em 1902, sem ter visto a conclusão da obra. Por se localizar em área de aterro, foi gasta uma soma muito alta de dinheiro só para preparar o terreno e fazer os alicerces. O projeto de construção foi elaborado e executado pelo pastor.dr. William Waddell, que substituiu o pastor Chamberlain. O mestre de obras se chamava José Martins Alves. No ano da inauguração do templo a igreja tinha 97 membros. Depois de três anos de inaugurado, em 26 de outubro de 1906, o templo desabou em conseqüência de uma enchente, deixando seis pessoas feridas.
O Rev. Henry McCall, que viajaria em missão para os Estados Unidos, resolveu adiar a viagem e trabalhar na reconstrução, o que ocorreu em 1907 na gestão do citado pastor José Ozias Gonçalves. Na década de 1970, de forma impensada, foram trocados os janelas laterais do templo por basculantes, descaracterizando parcialmente o edifício.
A Fábrica de Charutos Suerdieck
Residência dos diretores da Suerdieck. Foto abaixo, à direita, prédios da primeira unidade fabril da Suerdieck. Ã esquerda, prédio da segunda unidade fabril.
Subsequente à fragmentação do espaço da plantation açucareira no Recôncavo baiano, a partir da segunda metade do século XIX, emergiu uma “agricultura rudimentar doméstica [roças] baseada em redes familiares, que engendrou outros modos de relações sociais entre escravos, entre estes e os libertos, e a consolidação de espaços sociais alternativos no próprio sistema plantocrático” . Segundo Marcelin, no tocante a Cachoeira “essa relação peculiar com o regime do tempo e a organização do espaço de produção introduziram outras esperanças de vida dos escravos, principalmente relacionadas à acumulação de bens a fim de poder comprar sua liberdade, ou ainda no sentido de uma ativação dos laços familiares de modo a alcançar esse mesmo objetivo”. Isto tornou possível no contexto da produção do tabaco plantado em pequenas unidades agrícolas domésticas espalhadas em Cachoeira e em cidades e vilarejos próximos, que não só engendrou uma organização social distinta no Recôncavo como foi acompanhada de uma reorganização do trabalho, uma especialização profissional, que seria mais tarde absorvida pelas indústrias fumageiras locais, e na organização dos espaços e formação de núcleos residenciais negros em torno de unidades fabris. Nesse momento, como resposta ao estrangulamento da plantation açucareira, entrou em cena a agroindustrialização do fumo, que a partir de meados do século XIX passou a ser produzido em grande escala para atender o mercado europeu através do controle da exportação e capital alemão. Em 1838, Manoel Vasconcelos de Souza Bahiana fundava em Cachoeira a segunda fá
brica de rapé da Província.
Em 1842 seria instalada a primeira fábrica de charutos em São Felix, a Imperial Fábrica de Charutos Juventude, pertencente a Francisco Paes Cardoso. Em 1851, José Furtado de Simas inauguraria a Fábrica de Cha
rutos Fragrância. Em 1856, a firma Leite & Alves, do Rio de Janeiro, instalava sua filial em Cachoeira para produzir cigarros e cigarrilhas, a primeira da Bahia, que funcionaria até a década de 1970 . Em 1873, dois anos antes da fundação da Igreja Presbiteriana de Cachoeira, fundava-se em São Felix a Fábrica de Charutos Dannemann. Nessa mesma década seriam instaladas em Cachoeira as potentes fábricas de charutos Stein, Poock, intastalada na Rua 13 de Maio 7, na zona central da cidade da cidade de Cachoeira. No início do século XX, seria instalada a fábrica de fumos Suerdieck, com matriz em Maragojipe e filiais em Cachoeira Cruz das Almas. A unidade fabril da Suerdieck inicialmente funcionou em Cachoeira na Rua Formosa, importante zona comercial e endereço dos principais armazéns de fumos de Cachoeira, transferindo-se mais tarde para uma oura uniade a poucos metros da instalação inicial. Por volta de 1940 a empresa comprou, em mãos de Porcino José de Souza, a “chácara de número 84 [antiga número 12] à Rua dos Artistas”, ampliando a sua área industrial e área de plantio de tabaco para experimentação de sementes.. A “chácara” abrangia o Curral Novo (Avenida São Diogo) e a Rua Stela, conforme consta no livro de registro de notas de Cachoeira . Além da “casa de duas portas laterais de entrada, dez janelas de frente, duas salas de fundo, sete quartos, sala de jantar, cozinha e latrina”, o imóvel possuía ainda “quintal com um terreno no mesmo lugar, com 45 braças de frente, e trinta e duas [braças] de fundo”. Porcino José de Souza as adquiriu em 1937, em mãos de Felinta Chagas Vieira. Desconhece-se a relação profissional de Pocino José de Souza com a Suerdieck, mas é provável que tenha sido funcionário graduado da empresa e intermediou a transação comercial como tal, visto que residia em Coqueiro, distrito de Maragojipe, onde, como já foi mencionado, funcionava a unidade fabril matriz da Suerdieck.
A Chácara pertencia a Felinta Vieira por herança de seu marido, Carlos Silvestre de Souza Farias, que por sua vez as adquiriu em sociedade com João Pinheiro de Carvalho junto à Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte, em 3 de setembro de 1907. A Suerdieck, Dannemann e Costa Penna representavam, até meados do século XX, as maiores empresas fumageiras do Recôncavo baiano. Segundo o sociólogo Luis Aguiar Costa Pinto, essas empresas admitiam aproximadamente mil funcionários, a maioria constituída de mulheres. Além do quadro de operários diretamente empregados, as indústrias de fumo absorviam numerosa mão-de-obra, que eram contratadas temporariamente para o serviço de `destalamento` e seleção, que consistiam na retirada do pecíolo da folha de fumo e a subseqüente separação de acordo a sua qualidade, trabalhos esses indispensáveis para garantir a boa qualidade de produto. Tratava-se de uma atividade doméstica, que além de absorver trabalho de famílias inteiras, garantia principalmente a geração de emprego e renda de parte de população . Desse modo, as indústrias fumageiras no Recôncavo baiano foi um propulsor de desenvolvimento econômico. Os operários fumageiros não especializados eram, na sua maioria, constituídos de indivíduos oriundos da escravidão. Um questionário com doze perguntas apresentado pelo Ministério em 1881 com o objetivo de traçar o perfil das indústrias fumageiras do Recôncavo baiano evidencia a sua estrutura funcional. O quesito 5, que questiona os meios de produção, as empresas responderam unanimemente que “os charutos são fabricados a mão”. Respondem que a matéria prima é o fumo superior das Mattas de São Felix, São Gonçalo e Pedrão, que pode-se calcular em cerca de 2:0000 arrobas por anno, do custo aproximado de 20$000 reis por arroba”. Respondem no quesito 8 que “os operários empregados no fabrico regular são 40 homens; 20 mulheres e 10 meninos, que ganham o salário de 2 até 12:000 reis por semana, conforme as suas habilitações de trabalho”. Mais adiante, no último quesito, diz que “os operários são geralmente sem instrucção e na maior parte anaphabetos”. Embora o desenvolvimento agroindustrial fumageiro no Recôncavo baiano tenha aumentado a produção anual e o número de operários e lucro, como foi observado por L. A.Costa Pinto na década de 1940, o perfil do operário e seu salário não diferenciou muito daquela fábrica que em 1881 respondeu o questionário solicitado pelo Ministério da Agricultura. Embora não tenha sido o objetivo principal das companhias fumageiras de capital alemão absorver a mão-de-obra barata da população negra e especializada historicamente explorada no Recôncavo baiano, fica evidente que essas companhias se beneficiaram dessa aspecto. Atento para a boa qualidade e refinamento de seu precioso produto, os empresários alemães cuidaram em produzir o que de melhor pudessem para o exigente mercado europeu, visto que charuto era uma representação de status e refinamento social.
Para garantir o seu acesso no mercado, as grandes empresas não mediam esforços em absorver especialistas renomados. A Poock & Cia Fábrica de Charutos e a Suerdieck são casos exemplares. A Poock era uma empresa familiar instalada na Alemanha, que em finais do século XIX instalou filiais inicialmente no Rio Grande do Sul e depois em Cachoeira. Seus empregados que exerciam funções técnicas e outros funcionários graduados eram oriundos da Alemanha. Além de técnicos alemães, trabalhavam também em suas unidades fabris especialistas cubanos. A Suerdieck igualmente tinha em seus quadros funcionais trabalhadores alemães exercendo funções relevantes. O alemão Carl Kaorner, por exemplo, transferiu-se de Bremem, sua terra natal, para exercer função relevante na matriz maragojipana, transferindo-se em seguida para Cachoeira, onde exerceu função de gerente geral e constituindo família, que ainda hoje reside nessa localidade. Assim como o fundador da empresa, em 1945 Carl Kaorner retornou para seu pais. Naquele momento o Brasil ingressava na Segunda guerra Mundial como aliado norte-americano. As tensões sociais ocorridas no Recôncavo baiano em torno desse evento político representou um dos fatores basilares da decadência da industria fumageira nessa região, comprometendo principalmente a Suerdienck, que nesse momento representava a mais importante empresa, tanto em Cachoeira quanto em Maragojipe. Registra-e na tradição oral local que, em 1944, durante a festa em louvor a Santa Cecília, quando ocorre em novembro uma expressiva manifestação popular dançante nas ruas de Cachoeira, Carl Kaorner, temendo uma reação violenta popular contra a empresa alemã, esse estendeu uma enorme bandeira do Brasil na fachada da unidade fabril, o que impediu uma possível reação popular. Conta-se ainda que em frente à fábrica a multidão dançante improvisou o seguinte verso:
Oh, Santa Cecília
Venha nos valer
Para a guerra acabar
E o Brasil vencer.
O Cemitério de Protestantes
Portal do Cemitério de Protestantes de Cachoeira
No dia 13 de abril de 1857, a Mesa administrativa da Irmandade de São João de Deus da Santa casa de Misericórdia enviou ofício às irmandades religiosas católicas de Cachoeira solicitando a cada uma delas construir, à suas expensas, carneiras no cemitério que estava sendo construído na cidade de Cachoeira .
Com exceção da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Sagrado Coração de Maria do Monte da Rua Formosa, conhecida como Irmandade dos Nagôs, que alegou possuir seu cemitério próprio, construído em 1856, da Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda, que não era constituída formalmente, e da Irmandade da Ordem Terceira do Carmo, a Confraria do Amparo autorizou construir 40 carneiras, a Irmandade do Santíssimo Sacramento, construiu 15 carneiras, a Irmandade do Senhor Bom Jesus da Paciência adquiriu 20, a de Senhor Bom Jesus dos Martírios 20, a de Nossa Senhora do Rosário 25, a Irmandade da Conceição do Monte construiu 12 e a Irmandade de São João de Deus construiu 50 carneiras. Dezessete anos depois, em 1874, a Irmandade de São João de Deus inaugurava o equipamento, que ganharia a denominação de Cemitério Piedade. Antes da construção formal do mencionado cemitério, a Irmandade de São João de Deus sepultava seus mortos, e os falecidos no seu hospital da Santa Casa de Misericórdia, num arrabalde da então vila, localizada na imediação da estrada que dava acesso ao Capoeiruçu, uma zona rural de Cachoeira. Esse cemitério foi criado provisoriamente e de forma emergencial para sepultar vítimas da epidemia do cólera morbus, que vitimou milhares de pessoas no Recôncavo baiano entre 1550-60. Numa data não especificada, próximo ao cemitério fundado pela Irmandade de São João de Deus na proximidade da estrada de Capoeiruçu, havia um cemitério construído por protestantes. O termo “protestante” remete ao grupo de europeus não portugueses (alemães, ingleses, suíços de orientação religiosa luterana e calvinista, isto é, protestantes) que, como foi mencionado acima, chegou a Cachoeira (por extensão ao Recôncavo baiano), motivado pela implantação da ferrovia e pela industrialização do fumo nessa região a partir da segunda metade do século XIX.
Baseado na data de fundação da Igreja Presbiteriana em Cachoeira, acima analisada, o referido cemitério, que era uma reivindicação desse grupo religioso, certamente foi construído em meados ou final do século XIX. Não dispomos de peças documentais que ofereçam suportes para afirmar, mas é possível afirmar que as terras onde foi erigido esse cemitério foram compradas por Feliciano José de Araujo Lima. Vale ressaltar que no livro de atas da Igreja Presbiteriana de Cachoeira, corforme relata o já mencionado pastor Gevaldo Simões Sobrinho, consta um texto intitulado “Palavras proferidas na ocasião de se enterrar o Sr. Feliciano José de Araújo Lima”. Diz o pastor Gevaldo Simões que Feliciano é o primeiro nome da seção de “Óbitos” do livro de atas, onde consta que ele faleceu no dia 8 de abril de 1877 e foi sepultado no dia seguinte “no terreno que ele mesmo comprou para servir de cemitério para os acatólicos na Cachoeira”. Seis anos depois do falecimento, em 1883, José da Costa Ferreira, “procurador da Sociedade Fraternal Evangélica”, solicita à Câmara autorização para construir “seu cemitério”transferindo do alto da Rua da Feira, onde presentemente é edificado, para o alto dos Currais Velhos, a um [ao] lado [do cemitério] da Santa Casa” . O “alto da Rua da Feira” em referência é hoje denominado Cucuí de Brito, com suas ruelas e becos. Já o “alto dos Currais Velhos a um lado da Santa Casa” citado no documento é seguramente a atual Rua Stela (ou Rua André Rebouças).
Neste sentido, podemos afirmar que sem embargo as terras onde atualmente está assentado o Cemitério de Alemães (e também de Protestantes, acatólicos,exclusivamente para edificação do referido cemitério, de Estrangeiros, etc.), foram adquiridas em 1883 através da referida Sociedade Fraternal. No mesmo ano de 1883, o conselheiro municipal Francisco Vicente de Oliveira emitiu parecer em sessão ordinária, dizendo que “Attendendo as necesidades sentidas na Freguesia de São Felix de um cemitério, e ainda attendendo a utilização rel que pode elle prestar áquella população, proponho que do producto do imposto sobre o fumo em folha arrecadado no município no próximo exercício seja designado a quantia de três contos de reis destinado excluzivamente para edificação do referido cemitério, a crescentando-se [sic] na redacção do respectivo paragrapho o seguinte: três reais sobre kilograma de fumo em folha exportado do município, tirando-se a quantia de 3:000$000 desta verba para ser aplicado exclusivamente a factura de um cemitério na freguesia de São Felix. Cachoeira, 30 de abril de 1883”.
O que se pode reter deste parecer é que o grupo de europeus protestantes moradores na zona fumageira do Recôncavo baiano se impunha pela sua inserção econômica na região, e também pela sua inserção política diferenciada enquanto um grupo que se unia de forma identitária, tendo como elemento de referência a sua orientação religiosa protestante. As terras onde foi erigido o cemitério de Alemães pertenciam à Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte. Como foi citado em linhas acima, Fiuza fez doações de parte de suas terras, que no limiar do século XIX estavam sendo urbanizadas. Certamente as terras que foram vendidas para a Sociedade Fraternal Evangélica pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte foi uma das que em épocas anteriores à década de 1870 foram para ela doadas por José Antônio Fiúza da Silveira ou por seus herdeiros em épocas posteiores. A partir dessas evidências, é possível concluir, que a aquisição da chácara por parte da Fábrica de Charutos Suerdieck não se limitou unicamente em ampliar a sua área industrial, muito menos dotar à empresa de um laboratório de seleção de sementes de fumos, como foi utilizado o antigo quintal da chácara.
Tudo o que foi aqui dito leva a crer que a sua aquisição teve também como objetivo resgatar um espaço que tinha um significado simbólico importante para um pequeno, mas significativo núcleo de europeus protestantes que deixou marcas indeléveis nessa porção territorial do Recôncavo baiano. O Cemitério de Protestantes, como já foi aqui assinalado, está localizado no cume de uma ladeira que dá nome Rua Stela, atualmente denominada Rua André Rebouças. Trata-se de uma rua estreita, onde à direita existem casas vernaculares construídas no sopé de uma propriedade rural fragmentada da antiga chácara, resultante da divisão de propriedade quando da venda efetuada pela Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte, em 1907, lado esquerdo existem casas igualmente vernaculares construídas no declive do limite dos quintais das casas da Rua dos Artistas, a antiga Rua do Mata Burro, atualmente rua dos Artistas. O cemitério é uma construção simples, pequena (aproximadamente 600m2), composto de um portal em estilo gótico, que evidencia sua influência européia, com portão de ferro batido, protegido por um muro de aproximadamente 2 metros de altura. Vizinho existe uma casa onde residia o coveiro e vigia, atualmente ocupado pelo filho de um por um antigo operário da Suerdieck e funcionário do cemitério. Na entrada do cemitério existem colunas de ferro fundido, que sustentavam uma cobertura de telhas com frisos laterais de materiais não identificado.
Em toda a extensão do cemitério os jazigos são dispostos de forma paralela uns aos outros. Os jazigos são separados paralelamente. No bloco à direita da entrada do cemitério os jazigos são diferenciados dos outros blocos. Nessa parte os blocos são menores, certamente porque destinavam ao sepultamente de crianças. São poucos os jazigos preservados nesse bloco, visto que foram violados sem motivos aparentes. As lápides são simples, pequenas e artisticamente diferenciadas das lápides de cemitérios católicos. São elas caixas construídas em tijolos que afloram do chão, cobertas por uma placa de mármore, pedras e granito e cercadas por uma grade de ferro fundido e artisticamente trabalhados. Na cabeceira, em vez de epitáfios que caracterizam as lápides católicas, a maioria é constituída de placas de mármore com inscrições em baixo relevo contendo o nome, data de nascimento e falecimento do indivíduo, escritos em alemão e e em inglês No Cemitério de Protestantes foram sepultados indivíduos pertencentes até a segunda geração de europeus chegados na década de 1870 e início do século XX, ou seja, até aproximadamente a década de 1960. Verifica-se, contudo, a existência de jazigos datados da década de 1980, alguns em verdade constituídos de restos mortais de indivíduos falecidos em épocas anteriores e sepultados em outros cemitérios, sendo posteriormente trasladados para jazigos familiares naquele cemitério.
Na década de 1950, no entanto, a Igreja Presbiteriana de Cachoeira não mais possuíam membros – ou possuíam poucos membros - de sobrenome alemão, inglês ou suíço, embora descendentes seus permanecessem residindo e se envolvendo por relações matrimoniais com antigas famílias portuguesas e até mesmo negras da região e professando outros segmentos religiosos cristãos não-protestantes (católicos, por exemplo). Em meados da década de 1950, por exemplo, padres missionários alemães realizavam missas na igreja matriz local, e procissões acompanhadas por alemães católicos residentes em Cachoeira e São Félix . Do mesmo modo, ao longo do tempo a Igreja Presbiteriana de Cachoeira foi aos poucos acolhendo adeptos de variados estratos sociais, étnicos e de outras orientações religiosas, inclusive adeptos do candomblé.
A Igreja Presbiteriana de Cachoeira, enfim, se tornou aos poucos, do ponto de vista da etnicidade, uma instituição mestiça. Por causa desses fatores, entre outros, atualmente o equipamento encontra-se abandonado. Tal desinteresse deve-se ao fato de a referida instituição religiosa ter perdido suas referências históricas. A maioria dos jazigos foi depredado ou sofreu degradação devido a ação do tempo, necessitando de urgente intervenção para conter a sua iminente destruição. Localizada em meio a uma área de recentes e desordenadas construções de casas, o equipamento sofre ameaça de ser invadido.
A Igreja Presbiteriana de Cachoeira não manifesta interesse em preservar o cemitério, embora, como foi discutido, seja de fato e de júri a proprietária do equipamento. Em 1914, o cachoeirano Augusto Duarte registrou o falecimento de Aurélia Bertha Kiesler, de 48 anos, “ocorrido às 11:30 h. na Rua 25 de Junho, filha do Conde General de Kiesler e da condessa de Kiesler, casada com Frederico Hüpsel, natural da cidade de Neustadt Oberschlenn Kreisrtadt, na Alemanha, residente em Cachoeira”. A nobre alemã era mãe de Oceanna, Alfredo, Carlota, Gertrude, Anna, Hebert, José e Elsa. Como já foi dito, observando-se os jazigos preservados, verifica-se que até a década de 1940 o Cemitério dos Protestantes não realizava regularmente sepultamentos, mas pelo menos abrigava restos mortais de “estrangeiros”. Analisando tais jazigos, é possível identificar nome de pessoas que ainda possuem descendentes em Cachoeira, ou de pessoas que não são naturais ou residem nela, mas que mantém relações afetivas por relações de ancestralidades.
Algumas famílias são aqui citadas a partir de inscrição de suas lápides. São elas: Sophia Martfeld, nascida em Bahia [Salvador], em 19 de março de 1870, era filha de Konrad Martfeld, alemão que se estabeleceu em Cachoeira como plantador e exportador de fumos. Possui descendentes em Cachoeira, que preserva ainda um pequeno fabrico de manufatura de fumo. Walter Dannemann; geb 8 marz 1890; gest 14 august 1892, (nascido em 8 de março de 1892 e falecido em agosto de 1892), filho de Gerald Dannemann; Gerald Dannemann era natural de Bremem. Gerald era filho de Gerald Dannemann e Ottilia Danneman, e casado com Aleluia Navarro, filha do Dr. Antonio Rodrigues Navarro de Siqueira e Joanna Navarro de Siqueira, naturais de Salvador. Gerald Dannemann nasceu em 23 de abril de 1851 e Aleluia em 7 de abril de 1860, sendo testemunhas de casamento Carl Friedrick Schramm, natural de Bremen, negociante em Salvador, e José Isidoro Reppol, baiano de Salvador, engenheiro. Sophia Schramm, geb 16 mai 1918; gest 31 october 1920, era filha de Otto Schramm. Outra família Sharamm, sem vínculo de parentesco com seu patrício Otto Schramm e Bertha Schramm. Esta Bertha Schramm foi casada com Heinrich Schramm, que era tia de Sophia Martfeld, que era casada com Alberto Conrado Martfeld. Consta no seu inventário que Bertha Schramm faleceu na casa do súbdito allemão Alberto Conrado Martfeld, num sobrado existente no fundo da Estação Ferroviária de Cachoeira, o qual era casado com sua sobrinha Sophia Martfeld Bertha. Heinrich Schramm possuía imóvel à Rua Ponte Nova, 5, e faleceu na casa do “súbdito allemão Alberto Conrado Martfeld, o qual era casado com sua sobrinha Sophia Martfeld”. Bertha possuía herdeiros no estrangeiro (Alemanha e Argentina). Residiu, depois de viúva, com o já citado negociante Alberto Conrado Martfeld. Ela era alemã e seus familiares eram ligados à Igreja Luterana, conforme documento anexado na arrematação . O alemão Alberto Conrado Martfeld, agora com o nome aportuguesado, era filho dos alemães Konrad Joseph Martfeld e Nitte Maria Martfeld, naturais de Bremen, Alemanha, ambos luteranos. Otto Schramm, “gest 18 de abril de 1869 geb 17 de marz 1934”, era proprietários de terras em algumas localidades próximas de Cachoeira, onde plantava tabaco para exportação e fornecimento para fábricas de fumos da região. Alguns descendentes residem atualmente em Brasília, Rio de Janeiro e Salvador; Rudolf Gaeschlin; geb 23/11/1877; gest 17/01/1938, fazendeiro e proprietário de terras na zona açucareira de Cachoeira. I
dentificamos cinco europeus de variadas nacionalidades moradores de São Félix que eram protestantes e foram sepultados no citado cemitério. Eram eles: Sydney Clement Dore, inglês, natural de Londres, maquinista da Estrada de Ferro Central da Bahia, casado com América Tavares, brasileira. Em 1890, ano de seu falecimento, Sydney tinha 23 anos. Era filho de Thomas Bert Dore e Maria Luísa Dore, O outro era Carlos [Carl] Cristiano Emilio Deter, filho de Henrique João Deters e Carolina Mendes Deters, 41 anos, natural de Hamburgo, Alemanha . Pedro Cupertino e Philomena Galizia. Pedro Cupertino era filho de Cupertino e Maria Rosa, italiano, 45 anos, Maria Rosa era viúva, 35 anos, filha de Nicolau Galizia Rosa. João Carlos Frederico Simões, filho legítimo de Frederico Simões e Helena Simões, 45 anos, natural da Alemanha, e Angélica Senhorinha Pereira Baião, 29 anos, natural de Salvador, filha de Manoel Marcolino Pereira Baião e Tecla Maria do Pilar Baião.
Felix Angelotti, filho natural de João Angelotti e Rosa Maria Angelotti, 32 anos de idade, e D. Cândida Laudelino de Queiroz, 16 anos, cachoeirana, filho de José Machado de Queiroz e Simpliciana de Jesus Queiroz, de São Felix. Igualmente europeus residentes em São Felix que possuem lápides no Cemitério de Protestantes são os cinco nomes que não foi possível encontrar referências documentais. São eles: Ernst Jorn; geb 27/11/1884 in Uslar Deutschland; gest 19 februar 1910 in São Félix; Johann Rudolf Schrader; geb in Barsbuttel, 17 august 1874; gest in St. Félix [São Felix] 24 april 1899; Franz L. Reiske – 28.IX.1901/01.11.1923; Erwin Stanffert; geb 03/01/1900; gest 22 de mai 1926; Franz Feuerherd; geb 17/01/1876; gest 09 de maio 1931.
REGENERAÇÃO
No exame desse assunto irei:
Destacar a distinção comum entre regeneração e conversão.
1. Regeneração é o termo usado por alguns teólogos para expressar a agência divina na mudança do coração. Para eles, a regeneração não inclui nem implica a atividade do indivíduo, antes a exclui. Esses teólogos, conforme se verá no devido tempo, sustentam que uma mudança de coração é primeiro efetivada pelo Espírito Santo enquanto o indivíduo é passivo; tal mudança forma uma base para o exercício, pelo indivíduo, de arrependimento, fé e amor.
2. O termo conversão para eles expressa a atividade e mudança do indivíduo, depois que a regeneração é efetuada pelo Espírito Santo. A conversão para eles não inclui nem implica a agência do Espírito Santo, mas expressa apenas a atividade do indivíduo. Para eles o Espírito Santo primeiro regenera ou muda o coração, após o que o pecador muda ou se converte. De modo que Deus e o indivíduo agem, cada um por sua vez. Deus primeiro muda o coração e, como conseqüência, o indivíduo depois se converte ou volta-se para Deus. Assim, o indivíduo é passivo na regeneração, mas ativo na conversão.
Quando chegarmos ao exame das teorias filosóficas da regeneração, veremos que as concepções desses teólogos a respeito da regeneração
resultam natural e necessariamente do fato de defenderem o dogma da depravação moral constitutiva, que examinamos há pouco. Até que suas idéias sobre tal assunto sejam corrigidas, não se pode esperar qualquer mudança em suas concepções a respeito deste assunto.
As razões alistadas em favor dessa distinção.
1. O termo original expressa e implica claramente algo à parte da agência do indivíduo.
2. Precisamos e devemos adotar um termo que expresse a agência divina.
3. A regeneração é expressamente atribuída ao Espírito Santo.
4. A conversão, uma vez que implica e expressa a atividade e mudança do indivíduo, não inclui nem implica qualquer agência divina e, portanto, não implica nem expressa o que se entende por regeneração.
5. Uma vez que duas agências são de fato empregadas na regeneração e conversão de um pecador, é necessário adotar termos que ensinem esse fato com clareza e façam distinção nítida entre a agência de Deus e da criatura.
6. Os termos regeneração e conversão expressam de modo adequado essa distinção e, portanto, devem ser teologicamente empregados.
As objeções a essa distinção
1. O termo original gennao, com seus derivados, pode ser traduzido: (1) Gerar. (2) Produzir ou dar à luz. (3) Ser gerado. (4) Ser nascido ou trazido à luz.
2. Regeneração é, na Bíblia, o mesmo que o novo nascimento.
3. Nascer de novo é o mesmo, no uso bíblico do termo, que ter um novo coração, ser nova criatura, passar da morte para a vida. Em outras palavras, nascer de novo é ter um novo caráter moral, tornar-se santo. Regenerar é tornar santo. Nascer de Deus, sem dúvida, expressa e inclui a agência divina, mas também inclui e expressa aquilo para o que a agência divina é empregada, a saber, tornar santo o pecador. Decerto não é regenerado o pecador cujo caráter moral não é mudado. Se fosse, como se poderia afirmar verdadeiramente que quem é nascido de Deus vence o mundo, não comete pecado, não pode pecar, etc? Se a regeneração não implica nem inclui uma mudança de caráter moral no indivíduo, como a regeneração pode ser condição da salvação? O fato é que o termo regeneração, ou ser nascido de Deus, é designado para expressar primeira e principalmente o que foi feito, ou seja, o ato de tornar santo um pecador, e expressa também o fato de que a agência de Deus induz a mudança. Tire-se a idéia do que é feito, ou seja, a mudança do caráter moral no indivíduo, e ele não seria nascido de novo, não seria regenerado e não se poderia dizer de fato, nesse caso, que Deus o regenerou.
Objeta-se que o termo realmente significa e expressa apenas a agência divina; e, só por implicação abarca a idéia de uma mudança de caráter moral e, é claro, de atividade no indivíduo. A isso replico:
(1) Que se de fato expressa apenas a agência divina, deixa de fora a idéia daquilo que é efetuado pela agência divina.
(2) Que ele expressa real e plenamente não só a agência divina, mas também aquilo que essa agência cumpre.
(3) Aquilo que é gerado pela agência de Deus é um nascimento novo ou espiritual, uma ressurreição da morte espiritual, a indução de uma vida nova e santa. O resultado obtido é a idéia proeminente expressa ou denotada pelo termo.
(4) O resultado obtido implica a mudança ou atividade do indivíduo. Não faz sentido afirmar que seu caráter moral é mudado sem nenhuma atividade ou agência dele mesmo. Santidade passiva é impossível. Santidade é obediência à lei de Deus, a lei do amor e, é claro, consiste na atividade da criatura.
(5) Dissemos que regeneração é sinônimo, na Bíblia, de novo coração. Mas requer-se que os pecadores formem para si um novo coração, o que não poderiam fazer se não fossem ativos nessa mudança. Se a obra é uma obra de Deus, num sentido tal que é preciso que o homem primeiro regenere o coração ou alma antes que se inicie a agência do pecador, seria absurdo e injusto requerer dele que formasse para si um novo coração, antes que fosse primeiro regenerado.
A regeneração é atribuída ao homem no Evangelho, o que não poderia ocorrer se o termo fosse designado para expressar apenas a agência do Espírito Santo. "Porque, ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não ferieis, contudo, muitos pais; porque eu, pelo evangelho, vos gerei em Jesus Cristo" (1 Co 4.15).
(6) A conversão é considerada na Bíblia obra de outro, que não o próprio indivíduo; portanto não pode ter sido designada para expressar apenas a atividade do próprio indivíduo.
(a) Ela é atribuída à Palavra de Deus. "A lei do SENHOR é perfeita e refrigera a alma; o testemunho do SENHOR é fiel e dá sabedoria aos símplices" (SI 19.7).
(b) Ao homem: "Irmãos, se algum de entre vós se tem desviado da verdade, e alguém o converter, saiba que aquele que fizer converter do erro do seu caminho um pecador salvará da morte uma alma e cobrirá uma multidão de pecados" (Tg 5.19,20).
Tanto a conversão como a regeneração são às vezes na Bíblia atribuídas a Deus, às vezes ao homem e às vezes ao indivíduo; o que mostra claramente que a distinção sob análise é arbitrária e teológica, não bíblica. O fato é que ambos os termos implicam o exercício simultâneo da agência humana e divina. O fato de que um novo coração é o resultado demonstra a atividade do indivíduo, e a palavra regeneração ou a expressão "nascido do Espírito Santo" (Jo 3.5) afirma a agência divina. O mesmo se diz da conversão ou do ato de o pecador voltar-se para Deus. Diz-se que Deus o faz voltar-se e que ele se volta para Deus. Deus o atrai, e ele segue. Em ambas Deus e o homem estão igualmente ativos, e a atividade deles é simultânea. Deus age ou atrai, e o pecador cede ou se volta, o que eqüivale a dizer: muda o coração ou, em outras palavras, é nascido de novo. O pecador está morto em transgressões e pecados. Deus o chama: "Desperta, ó tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá" (Ef 5.14). Deus chama; o pecador ouve e responde, Eis-me aqui; Deus diz, Levanta-te dentre os mortos. O pecador coloca-se em atividade, e Deus o conduz para a vida; ou, antes, Deus conduz, e o pecador surge para a vida.
(7) A distinção estabelecida não só não é reconhecida na Bíblia, como é evidentemente a mais danosa tendência por dois motivos:
(a) Pressupõe e inculca uma falsa filosofia de depravação e regeneração.
(b) Leva o pecador a esperar ser regenerado antes de se arrepender ou se voltar para Deus. E tendência por demais fatal representar o pecador como alguém que necessita aguardar passivamente ser regenerado antes de se entregar a Deus.
Uma vez que a distinção não é apenas arbitrária, mas antibíblica e injuriosa, e uma vez que é fundamentada numa filosofia falsa e perniciosa sobre a questão da depravação e da regeneração, sendo designada para ensiná-la, deixarei e descartarei a distinção; e em nossa investigação daqui em diante, que se entenda que uso regeneração e conversão como termos sinônimos.
O que não é regeneração.
Não é uma mudança na substância da alma ou corpo. Se fosse, os pecadores não poderiam ser exigidos a efetuá-la. Tal mudança não se constituiria uma mudança de caráter moral. Não é necessária uma mudança dessas, uma vez que o pecador possui todas as faculdades e atributos naturais para prestar obediência perfeita a Deus. Tudo o que precisa é ser induzido a usar essas faculdades e atributos como deve. As palavras conversão e regeneração não implicam qualquer mudança de substância, mas só uma mudança de estado moral ou caráter moral. Os termos não são empregados para expressar uma mudança física, mas moral.
A regeneração não expressa ou implica a criação de alguma nova faculdade ou atributo de natureza, nem alguma mudança, qualquer que seja, na constituição do corpo ou mente. Devo discorrer mais sobre esse ponto quando chegarmos ao exame das teorias filosóficas da regeneração aludidas anteriormente.
O que é regeneração.
Diz-se que a regeneração e uma mudança no coração são idênticas. É importante inquirir o uso bíblico do termo coração. O termo, como muitos outros, é empregado na Bíblia em vários sentidos. O coração é com freqüência mencionado na Bíblia, não só como algo que possui caráter moral, mas como a nascente de ação moral ou como a fonte da qual fluem bons e maus atos e, é claro, como o que constitui a fonte de santidade ou de pecado, ou, ainda em outras palavras, como algo que compreende, estritamente falando, todo o caráter moral. "Mas o que sai da boca procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias" (Mt 15.18,19); "Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca. O homem bom tira boas coisas do seu bom tesouro, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más" (Mt 12.34, 35). Quando o coração é assim representado como algo que possui caráter moral e como a fonte do bem e do mal, não pode significar:
1. O órgão físico que impele o sangue.
2. Não pode significar a substância da alma ou a própria mente: a substância não pode possuir em si caráter moral.
3. Não pode ser uma faculdade ou atributo natural.
4. Não pode consistir em algum gosto, atrativo ou apetite constitutivo, pois esses não podem possuir em si caráter moral.
5. Não é a sensibilidade ou a faculdade sensitiva da mente: pois vimos que o caráter moral não pode ser atribuído a ela. E verdade, e que se compreenda isso, que o termo coração é empregado na Bíblia nesses sentidos, mas não quando o coração é considerado a fonte da ação moral. Quando o coração é representado como algo que possui caráter moral, a palavra não pode ter a intenção de designar qualquer estado mental involuntário. Pois nem a substância da alma ou do corpo, nem algum estado involuntário da mente podem, em hipótese alguma, possuir caráter moral em si. A própria idéia de caráter moral implica e sugere a idéia de uma ação ou intenção livre. Negar isso seria negar uma verdade primeira.
6. O termo coração, quando aplicado à mente, é figurativo e significa algo na mente que possui algum ponto de semelhança com o órgão físico desse nome, e uma consideração da função do órgão físico manifestará a verdadeira idéia do que seja coração da mente. O coração do corpo impele a corrente vital e sustenta a vida orgânica. E a fonte da qual corre o fluido vital, da qual pode brotar ou a vida ou a morte, de acordo com o estado do sangue. A mente, bem como o corpo, possui um coração que, conforme vimos, é apresentado como a fonte ou como uma influência propulsora eficiente de onde flui o bem ou o mal, dependendo de o coração ser bom ou mau. Esse coração é considerado, não só a fonte do bem e do mal, mas bom ou mau em si, algo que constitui o caráter do homem, e não só algo dotado de caráter moral.
Ele é também apresentado como algo sobre o qual temos controle, pelo qual somos responsáveis e que, no caso de ser perverso, somos obrigados a mudar sob pena de morte. De novo: o coração, no sentido em que estamos considerando, é aquele cuja mudança radical constitui-se uma mudança radical de caráter moral. Isso fica claro em Mateus 12.34,35; 15.18,19 já considerados.
7. Nossa própria consciência, portanto, deve-nos informar que o coração da mente que possui essas características nada mais pode ser, se não a suprema intenção última da alma. A regeneração é apresentada na Bíblia como algo que constitui uma mudança radical de caráter, como a ressurreição da morte no pecado, como o início de uma vida nova e espiritual, como o que constitui uma nova criatura, como uma nova criação, não uma criação física, mas uma criação moral ou espiritual, como conversão ou voltar-se para Deus, como entrega do coração a Deus, como amar a Deus de todo o nosso coração e a nosso próximo como a nós mesmos. Ora, vimos abundantemente que o caráter moral pertence à escolha última ou intenção da alma, sendo um atributo dela.
A regeneração, portanto, é uma mudança radical da intenção última e, obviamente, do fim ou alvo da vida. Vimos que a escolha de um fim é eficiente em produzir volições executivas ou o uso dos meios para obter seu fim. Uma escolha última egoísta é, pois, um coração perverso, do qual flui todo o mal; e uma escolha última benevolente é um coração bom, do qual fluem todo o bem e atos louváveis.
A regeneração, para possuir as características atribuídas a ela na Bíblia, deve consistir numa mudança na atitude da vontade, ou numa mudança em sua escolha, intenção ou preferência última; uma mudança que troque o egoísmo pela benevolência; a escolha da gratificação própria como o fim último e supremo da vida pela escolha suprema e última do máximo bem-estar de Deus e do universo; de um estado de inteira consagração ao interesse próprio, indulgência própria, gratificação própria, por si ou como um fim, e como o fim supremo da vida, para um estado de inteira consagração a Deus e aos interesses de seu reino como o supremo e último fim da vida.
A necessidade universal de regeneração
1. A necessidade de regeneração como condição para salvação deve ter a mesma extensão da depravação moral. Isso tem-se mostrado universal entre os agentes morais irregenerados de nossa raça. E certamente impossível que um mundo ou um universo de seres egoístas ou não santos seja feliz. É intuitivamente certo que sem benevolência ou santidade nenhum ser moral pode ser de fato feliz. Sem regeneração, uma alma egoísta não tem possibilidade de estar apta para as ocupações ou os prazeres do Céu.
2. As Escrituras ensinam de modo expresso a necessidade universal de regeneração. "Jesus respondeu e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus" (Jo 3.3); "Porque, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura" (Gl 6.15).
Agências empregadas na regeneração.
1. As Escrituras com freqüência atribuem a regeneração ao Espírito de Deus. "Jesus respondeu: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito" (Jo 3.5,6); "Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus" (Jo 1.15).
2. Vimos que o indivíduo é ativo na regeneração, que a regeneração consiste em o pecador mudar sua escolha, intenção, preferência última; ou em mudar do egoísmo para o amor ou benevolência; ou, em outras palavras, em voltar-se da suprema escolha da gratificação própria para o supremo amor a Deus e a amor equivalente a seu próximo. É claro que o objeto da regeneração deve ser um agente na obra.
3. Há em geral outros agentes, um ou mais agentes humanos ocupados em persuadir o pecador a converter-se. A Bíblia reconhece tanto o indivíduo como o pregador como agentes na obra. Assim, Paulo diz: "Porque eu, pelo evangelho, vos gerei em Jesus Cristo" (1 Co 4.15). Aqui é empregada a mesma palavra que consta em outro trecho em que a regeneração é atribuída a Deus.
Ainda, um apóstolo diz: "Purificando a vossa alma na obediência à verdade..." (1 Pe 1.22). Aqui a obra é atribuída ao indivíduo. Há, pois, sempre dois e, em geral, mais que dois agentes empregados em efetuar a obra. Alguns teólogos têm sustentado que a regeneração é a obra apenas do Espírito Santo. Para provar isso citam passagens que a atribuem a Deus. Mas posso com igual legitimidade insistir que se trata de uma obra só do homem e citar, para fundamentar minha posição, aquelas passagens que a atribuem ao homem. Ou posso asseverar que é obra apenas do indivíduo, e em prova dessa posição citar aquelas passagens que a atribuem ao indivíduo. Ou, ainda, posso asseverar que é efetuada apenas pela verdade, e citar passagens como as seguintes para fundamentar minha posição: "Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias das suas criaturas" (Tg 1.18); "Pois fostes regenerados não de semente corruptível, mas de incorruptível, mediante a palavra de Deus, a qual vive e é permanente" (1 Pe 1.23).
É comum considerar a terceira pessoa um mero instrumento na obra. Mas o fato é que se trata de um agente que deseja, planeja, é responsável, tanto quanto Deus ou o indivíduo.
Caso se indague como a Bíblia pode ser coerente ao atribuir a regeneração ora a Deus, ora ao indivíduo, ora à verdade, ora a uma terceira pessoa, a resposta deve ser buscada na natureza da obra. A obra realizada é uma mudança de escolha com respeito a um fim ou o fim da vida. O pecador cuja escolha é mudada deve, é claro, agir. O fim a ser mudado deve ser apresentado de modo claro e convincente; essa é a obra do Espírito Santo. O Espírito toma as circunstâncias de Cristo e as apresenta à alma. A verdade é empregada, ou é a verdade que deve necessariamente ser empregada, como instrumento para induzir uma mudança de escolha.
Instrumentos empregados na obra.
1. Verdade. Ela deve, pela natureza da regeneração, ser empregada em sua execução, pois a regeneração é nada mais que a vontade sendo devidamente influenciada pela verdade.
2. Pode haver, e amiúde há, muitas providências ocupadas em iluminar a mente e em induzir a regeneração. São instrumentos. São meios ou recursos para apresentar a verdade. Misericórdias, julgamento, homens, medidas e, em suma, todo o tipo de elementos que conduzem à iluminação da mente, são instrumentos empregados em sua execução.
Os que defendem a depravação moral física ou constitutiva devem sustentar, é claro, a regeneração constitutiva; e, é claro, a coerência os compele a manter que só há um agente empregado na regeneração e que este é o Espírito Santo, e que instrumento algum é empregado, porque a obra é, de acordo com eles, um ato de poder criador; que a própria natureza é mudada e, é claro, nenhum instrumento pode ser empregado, assim como não pôde ser empregado na criação do mundo. Esses teólogos têm afirmado, vezes e mais vezes, que a regeneração é um milagre; que não há capacidade alguma no Evangelho, qualquer que seja sua apresentação, seja ele apresentado por Deus ou por um homem, de regenerar o coração. Dr. Griffin, em suas aulas na Rua Park, sustenta que o Evangelho, em sua tendência natural e necessária, só cria e perpetua a oposição e o ódio a Deus, até que o coração seja mudado pelo Espírito Santo. Ele entende que a mente carnal não é um estado voluntário da mente, não uma submissão à carne, mas a própria natureza e constituição da mente; e essa inimizade contra Deus é parte, atributo ou apetite da própria natureza. Por conseguinte, ele deve negar a capacidade de o Evangelho regenerar a alma. Tem sido proclamado por essa classe de teólogos, vezes sem conta, que não há ligação filosófica entre a pregação do Evangelho e a regeneração dos pecadores, nenhuma capacidade no Evangelho de produzir esse resultado; mas, pelo contrário, que é apto para produzir um resultado oposto. As ilustrações preferidas de suas idéias tem sido a de Ezequiel profetizando aos ossos secos e a de Cristo restaurando a visão ao cego pelo emprego de lodo em seus olhos. A profecia de Ezequiel aos ossos secos não serviu para animá-los, dizem. E o lodo empregado pelo Salvador era designado mais para destruir do que restaurar a visão. Isso mostra como é fácil para os homens adotar uma filosofia perniciosa e absurda e, depois, encontrá-la ou pensar encontrá-la sustentada na Bíblia. Qual deve ser o efeito de inculcar um dogma segundo o qual o Evangelho não tem relação alguma com a regeneração de um pecador? Em vez de lhe dizer que a regeneração nada mais é do que abraçar o Evangelho, dizer que deve esperar e primeiro ter a constituição recriada, antes que tenha a possibilidade de fazer algo que não seja opor-se a Deus! Isso é dizer-lhe a maior e mais abominável e danosa das falsidades. E zombar de sua inteligência. Quê! Chamá-lo, sob risco de morte, a crer, a abraçar o Evangelho, a amar a Deus de todo o coração e, ao mesmo tempo, apresentá-lo inteiramente indefeso e, por constituição, inimigo de Deus e do Evangelho e sob a necessidade de esperar que Deus regenere sua natureza antes que lhe seja possível tomar outra atitude que não seja odiar a Deus de todo o coração!
Na regeneração o indivíduo é passivo e ativo.
1. Que é ativo evidencia-se pelo que foi dito e pela própria natureza da mudança.
2. Que é, ao mesmo tempo, passivo evidencia-se pelo fato de agir apenas quando recebe a ação. Ou seja, é passivo na percepção da verdade apresentada pelo Espírito Santo. Sei que essa percepção não faz parte da regeneração. Mas é simultânea à regeneração. Ela induz a regeneração. É a condição e a ocasião da regeneração. Assim, o objeto da regeneração deve receber ou perceber a verdade apresentada pelo Espírito Santo no instante da regeneração e durante esse ato. O Espírito age sobre ele pela verdade ou por seu intermédio: até então ele é passivo. Ele concorda com a verdade: aqui é ativo. Em que erro caem os teólogos que apresentam o indivíduo totalmente passivo na regeneração! Isso livra de imediato o pecador da convicção de qualquer dever ou responsabilidade nesse sentido. E maravilhoso que tal absurdo seja mantido há tanto tempo na igreja. Mas enquanto é mantido, não surpreende que os pecadores não se convertam a Deus. Enquanto o pecador crer nisso, é impossível, caso tenha em mente que deva ser regenerado. Ele pára e espera que Deus faça o que Deus requer dele, o que ninguém pode fazer por ele. Nem Deus nem qualquer outro ser podem regenerá-lo, caso ele não se decida. Se ele não mudar sua escolha, é impossível ela ser mudada. Os pecadores que foram assim ensinados e creram no que lhes foi ensinado jamais teriam sido regenerados, não fosse o Espírito Santo chamar-lhes a atenção para o erro e, antes que tivessem ciência disso, induzi-los a aceitar a oferta de vida.
O que está implícito na regeneração.
1. A natureza da mudança mostra que ela deve ser instantânea. É uma mudança de escolha ou de intenção. Isso deve ser instantâneo. A obra preparatória de convicção e iluminação da mente pode ser gradual e progressiva. Mas quando ocorre a regeneração, deve ser instantânea.
2. Implica uma mudança completa presente de caráter moral, ou seja, uma mudança da inteira pecaminosidade para a inteira santidade. Vimos que ela consiste numa mudança do egoísmo para a benevolência. Também vimos que o egoísmo e a benevolência não podem coexistir na mesma mente; que o egoísmo é um estado de suprema e inteira consagração a si próprio; que a benevolência é um estado de inteira e suprema consagração a Deus e ao bem do universo. A regeneração, portanto, decerto implica uma inteira mudança de caráter moral.
De novo: A Bíblia representa a regeneração como morrer para o pecado e viver para Deus. A morte no pecado é a depravação total. Isso recebe aceitação geral. Morrer para o pecado e viver para Deus deve implicar inteira santidade presente.
3. As Escrituras representam a regeneração como a condição da salvação em tal sentido que, se o indivíduo morresse imediatamente após a regeneração, sem nenhuma outra mudança, iria de imediato para o Céu.
De novo: As Escrituras só requerem perseverança no primeiro amor como condição de salvação, no caso de a alma regenerada ter longa vida sobre a Terra subseqüentemente à regeneração.
4. Quando as Escrituras requerem de nós que cresçamos na graça e no conhecimento do Senhor Jesus Cristo, isso não implica que ainda exista no coração regenerado algum pecado remanescente que sejamos instados a afastar aos poucos. Mas o espírito da exigência deve ser que devemos adquirir todo o conhecimento possível a respeito de nossas relações morais e continuar a nos conformar a toda a verdade assim que tomemos conhecimento dela. Isso, e nada mais, é o que se entende por permanecer em nosso primeiro amor ou permanecer em Cristo, viver e andar no Espírito.