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Sermão de natal Spurgeon
“Disse então Maria: A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” - Lucas 1:46-47
Maria estava de visita quando expressou sua felicidade na linguagem desse nobre cântico. Seria bom que todas nossas relações sociais fossem tão úteis para nossos corações, como essa visita foi para Maria. “Ferro com ferro se afia; e assim o homem afia o rosto de seu amigo”. Maria, cheia de fé, faz uma visita a Isabel, quem estava ensopada de uma santa confiança, e no pouco tempo de estarem reunidas, sua fé remonta-se a plena convicção e sua plena convicção brotava em uma torrente de sagrado louvor. Esse louvor despertou seus poderes adormecidos, e em lugar de aldeãs comuns, vemos diante de nós duas profetizas e a duas poetizas, sobre as quais o Espírito de Deus descansou em abundância.
Quando nos reunimos com nossos parentes e conhecidos, nossa oração a Deus deve implorar que nossa comunhão seja, não somente agradável, mas sim proveitosa, que não se trate simplesmente de passar o tempo e de desfrutar de uma hora agradável, mas sim que possamos nos aproximar ao céu na marcha de um dia, e que possamos adquirir uma maior aptidão para nosso eterno repouso.
Observem, essa manhã, o gozo sagrado de Maria, para que possam imitá-lo. Essa é uma época na que todos esperam que sejamos felizes. Felicitamos-nos uns aos outros desejando que possamos ter um “Feliz Natal”. Alguns cristãos que são um pouco escrupulosos não gostam da palavra “feliz”. É uma boníssima palavra proveniente do antigo saxão, que contém a felicidade da meninice e o júbilo da idade adulta, que traz a nossa mente o antigo canto dos coros natalinos e o repique dos sinos da meia-noite, o azevinho e as lareiras ardendo. Eu amo essa palavra por sua menção em uma das mais ternas parábolas que descreve que, quando o filho pródigo, perdido por tão longo tempo, regressou para casa de seu pai são e salvo, “começaram a se alegrar”. Essa é a época se espera que sejamos felizes, e o desejo de meu coração é que, no mais sublime e melhor sentido, vocês, crentes, sejam “felizes”.
O coração de Maria estava alvoroçado dentro dela – porem, aqui está o sinal de seu alvoroço: que se tratava de uma alegria santa e cada uma de suas gotas era de um reboliço sagrado. Não era um alvoroço com o quão os mundanos desfrutam de suas farras hoje e amanhã, mas sim um júbilo como o que os anjos desfrutaram ao redor do trono onde cantam: “Glória a Deus nas alturas”, enquanto nós cantamos: “E na terra paz, boa vontade para com os homens”. Tais corações ditosos gozam de um festival continuou. Eu quero que vocês, ‘os que estão nas bodas’, possuam hoje e amanhã, sim, possuam em todos seus dias a sublime e consagrada bem-aventurança de Maria, para que não somente possam ler suas palavras, mas que as usem em vocês mesmos, experimentando sempre seu significado: “Engrandece minha alma ao Senhor; meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”.
Em primeiro lugar, observem que ela canta – em segundo lugar, ela canta docemente – em terceiro lugar, pergunto, haverá de cantar sozinha?
I. Observem primeiro que MARIA CANTA.
Seu tema é um Salvador; ela aclama ao Deus encarnado. O longamente esperado Messias está a ponto de aparecer. Aquele a quem os profetas e os príncipes esperaram durante longo tempo, está a ponto de vir e de nascer da virgem de Nazaré. Em verdade jamais houve um tema para o mais doce cântico que esse: a condescendência da Deidade para com a fraqueza da humanidade. Quando Deus manifestou Seu poder nas obras de Suas mãos, as estrelas matutinas cantaram em coro e os filhos de Deus deram gritos de júbilo – porem quando Deus se manifesta Ele mesmo, que música bastaria para o grandioso salmo de assombro adorador? Quando a sabedoria e o poder são vistos, não são vistos senão os atributos – porem na encarnação, é a pessoa divina quem é revelada no véu de nossa inferior argila: Maria bem poderia cantar, já que a terra e o céu mesmo agora se maravilham diante da graça condescendente. Digna de uma música sem comparação é a notícia de que “o Verbo foi feito carne, e habitou entre nós.” Já não existe mais um grande abismo estendido entre Deus e Seu povo, pois a humanidade de Cristo construiu uma ponte sobre ele. Já não pensamos mais que Deus assenta-se no alto, indiferente as necessidades e aflições dos homens, pois Deus nos visitou e desceu até a baixeza de nossa condição. Não necessitamos nos lamentar mais porque não possamos jamais participar da glória moral e da pureza de Deus, pois se Deus em glória desce até Sua criatura pecaminosa, é certamente mesmo difícil levar essa criatura – lavada com o sangue e purificada – às alturas por essa via adornada de estrelas, para que o redimido se sente para sempre em Seu trono.
Não devemos sonhar mais, sumidos em sombria tristeza, que não podemos nos aproximar a Deus, e quer Ele não ouvirá realmente nossa oração, nem se compadecerá de nossas necessidades, se vemos que Jesus se converteu em osso de nossos ossos e carne de nossa carne: um bebê nascido igual que nós, vivendo a vida que nós temos que viver, carregando com as mesmas debilidades e aflições, e inclinando Sua cabeça diante da mesma morte.
Ó, não podemos vir com ousadia por esse caminho novo e vivo e apelar ao trono da graça celestial, quando Jesus reúne-se conosco como Emanuel, Deus conosco? Os anjos cantaram sem quase saber a razão. Podiam entender o porquê que Deus havia se feito homem? Devem ter conhecido que ai havia um mistério de condescendência – porem todas as amorosas consequências que a encarnação implicaram, nem suas agudas mentes teriam podido adivinhar; porem, nós vemos tudo, e compreendemos mais plenamente o grandioso desígnio. A manjedoura em Belém era grande em glória – na encarnação estava envolvida toda a bem-aventurança mediante a qual uma alma, arrebatada das profundezas do pecado, é alçada às alturas da glória. Nosso maior conhecimento não nos conduzirá a alturas de canto que as conjecturas angelicais não podiam alcançar? Por acaso os lábios dos querubins serão movidos a dizer sonetos ardentes e nós, que somos redimidos pelo sangue do Deus encarnado, vamos ficar traiçoeira e ingratamente calados?
Não cantaram os arcanjos Tua vinda?
Não aprenderam os pastores Sua direção?
A vergonha me cobriria por ingrato,
Se minha língua se recusasse a louvar”
Esse, no entanto, não foi o tema completo de seu santo hino. Seu peculiar deleite não era que um Salvador devia nascer, mas sim que devia nascer para ela. Ela era bendita entre as mulheres e altamente favorecida do Senhor – porem, nós podemos desfrutar do mesmo favor – e mais, nós devemos desfrutar dele ou a vinda do Salvador não nos serviria de nada para nós. Eu sei que Cristo no Calvário tira o pecado de Seu povo. Porem, ninguém conheceu jamais o poder de Cristo na cruz, a menos que o Senhor seja formado no indivíduo como a esperança de glória.
A ênfase do cântico da virgem está colocada sobre a graça especial de Deus para com ela. Essas breves palavras, esses pronomes pessoais, nos informam que se tratava realmente de um assunto pessoal com ela. “Engrandece MINHA alma ao Senhor, e MEU espírito se alegra em Deus MEU Salvador”. O Salvador era, de forma peculiar e em um sentido especial, seu. Ao cantar, ela não disse: “Cristo para todos”, mas sim que seu alegre tema foi: “Cristo para mim”.
Amados, Cristo Jesus está em seu coração? Uma vez o olharam desde um ponto distante, e esse olhar os curou de todas suas enfermidades espirituais, porem, agora vivem descansando Nele, e o recebem em suas próprias entranhas como seu alimento e bebida espirituais? Vocês frequentemente se alimentaram de Sua carne e beberam de Seu sangue em santa comunhão – foram sepultados juntamente com Ele para morte pelo batismo – vocês se entregaram em sacrifício a Ele e o tomaram como sacrifício para vocês; podem cantar sobre Dele como a esposa o fez: “Sua esquerda está debaixo de minha cabeça, e sua direita me abraça... Meu amado é meu, e eu sou sua – Ele apascenta entre os lírios.”
Esse é um feliz estilo de vida, e todo o que não chegue a isso é um pobre trabalho de escravos. Ó, vocês não podem conhecer o gozo de Maria a menos que Cristo se converta em seu, real e verdadeiramente – porem, á, quando Ele é seu, seu interiormente e reina em seu coração, e controla todas suas paixões, e transforma sua natureza, e subjuga suas corrupções inspirando-lhes santas emoções, seu no íntimo, sendo uma alegria indizível e cheia de glória – ó, então podem cantar, devem cantar, quem poderia calar suas línguas? Ainda que todos os burladores e os escarnecedores de terra lhes pedissem que se calassem, vocês teriam que cantar, pois seus espíritos devem se regojizar em Deus seu Salvador.
Perderíamos muita instrução se passássemos por alto o fato de que o poema escolhido que temos diante de nós é um hino de fé. O Salvador ainda não havia nascido, e tampouco, até onde podemos julgar, tampouco a virgem tinha alguma evidência do tipo requerido pelo sentido carnal para fazê-la crer que um Salvador nasceria dela. ‘Como isso poderia ser?’, era uma pergunta que naturalmente poderia ter suspendido seu cântico enquanto não recebesse uma resposta convincente para carne e sangue – porem, não tinha surgido tal resposta. Ela sabia que para Deus todas as coisas são possíveis e um anjo lhe havia entregado essa promessa, e isso lhe bastava: pela força da Palavra que saiu de Deus, seu coração saltou de alegria e sua língua glorificou Seu nome.
Quando considero o que é o que ela creu, e como recebeu a palavra sem duvidar, estou disposto a dar-lhe como mulher, um lugar quase tão proeminente como o que Abraão ocupou como homem – e se não me atrevo de chamá-la de mãe dos fiéis, pelo menos deve receber a honra devida como uma das mais excelentes mães de Israel. Maria merecia com crédito a benção de Isabel: “Bem- aventurada a que creu”. Para ela “a certeza do que se espera foi sua fé, e fé foi também sua convicção do que não se vê” – ela sabia pela revelação de Deus, que devia levar a semente prometida que feriria a cabeça da serpente – porem, não tinha nenhuma outra prova.
Nesse dia há alguns em nosso meio que possuem pouco ou nenhum gozo consciente da presença do Salvador – caminham e trevas e não enxergam nenhuma luz – gemem pelo pecado inato e se lamentam porque as corrupções prevalecem – devem confiar agora no Senhor, e lembrar que se crêem no Filho de Deus, Cristo Jesus está neles, e por fé, muito bem podem cantar gloriosamente a aleluia do amor adorador. Ainda que o sol não brilhe hoje, as nuvens e as névoas não apagaram sua luz, ainda que o Sol da Justiça não brilhe sobre você nesse instante, mantém Seu lugar nesses céus e não conhece variabilidade nem a sombra de uma mudança. Se, apesar de todas suas escavações, o poço não brota, deve saber que uma constante plenitude permanece nessa profundeza, que se esconde por trás do coração e propósito de um Deus de amor. Se como Davi, você está abatido como ele esteve, diga à sua alma: “Espera em Deus, porque ainda hei de louvar-te, salvação minha e Deus meu”. Então, alegre-se com a alegria de Maria: o gozo de um Salvador que é completamente seu, mas que é evidenciado como tal não pelo sentido, mas sim pela fé. A fé possui sua música igual que o sentido, mas é de uma classe mais divina: se as comidas fartas nas mesas fazem com que os homens cantem e dancem, os festejos de uma natureza mais refinada e etérea enchem os crentes de uma santa plenitude de deleite.
Ainda ouvindo o cântico da virgem favorecida, permitam-me observar que sua baixeza não a fez parar seu cântico – melhor, inserta nele uma nota mais doce. “Porque há olhado para a baixeza de sua serva.” Querido amigo, você está sentindo mais intensamente que nunca a profundeza de sua natural depravação, e é abatido sob o sentido de suas muitas falhas, e está tão morto e tão ligado à terra ainda mesmo nessa casa de oração que não pode se levantar para Deus – Tem estado triste e deprimido, enquanto nossas cantatas de Natal ressoaram em seus ouvidos – se sente hoje tão inútil para a Igreja de Deus, tão insignificante, tão completamente indigno, que sua incredulidade lhe sussurra: “Em verdade, em verdade, não possui nenhum motivo para cantar”.
Vamos, meu irmão, vamos, minha irmã, imitem essa bendita virgem de Nazaré, e convertam a essa própria baixeza e insignificância que sentem tão dolorosamente, em uma razão para uma louvação incessante. Filhas de Sião, digam docemente em seus hinos de amor: “Tem olhado para baixeza de sua serva”. Entre mais indigno sou de Seus favores, mais docemente cantarei de Sua graça. O que importa que eu seja o mais insignificante de todos Seus escolhidos? – eu louvarei Àquele que com olhos de amor me buscaram, e puseram Seu amor em mim. “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeu essas coisas dos sábios e entendidos, e as revelou aos meninos. Sim, Pai, porque assim lhe agradou”.
Queridos amigos, estou seguro de que o recordo de que há um Salvador e de que esse Salvador é seu, deve fazer-lhes cantar – e se colocam junto a esse pensamento de que uma vez foram pecadores, imundos, vis, odiosos e inimigos de Deus, então suas notas se remontarão mais alto, e chegarão até o terceiro céu para ensinar o louvor de Deus às harpas de ouro.
É muito digno de ser advertir que a grandeza da benção prometida não lhe deu à doce cantante um argumento para suspender seu agradecido tom. Quando medito sobre a grande bondade de Deus ao amar a Seu povo antes que a terra existisse, ao entregar Sua vida por nós, ao interceder por nossa causa diante do trono eterno, ao dispor um paraíso de repouso para nós para sempre, um negro pensamento me perturbou: “Certamente esse é um privilégio demasiadamente sublime para um inseto de um dia como é essa pobre criatura, o homem”. Maria não contemplou esse assunto incredulamente, mas sim que se alegrou mais intensamente por isso mesmo. “Porque grandes coisas o Poderoso me há feito”.
Vamos, alma, é grandioso ser um filho de Deus, porem, como seu Deus faz grandes portentos, não vacile motivado pela incredulidade, mas sim triunfe em sua adoção ainda que seja uma grande misericórdia. Ó, é uma poderosa misericórdia, mais alta que os montes, ser eleito por Deus desde toda eternidade, porem é uma verdade que seus redimidos são eleitos assim, e, portanto, cante motivado por isso. É uma profunda e indizível benção ser redimido com o precioso sangue de Cristo, mas você é redimido assim mais além de toda dúvida. Portanto, não duvide, antes, dê altos gritos pela alegria de seu coração. É um pensamento arrebatador que more acima, e que leve a coroa, e agite a rama de palma para sempre – que nenhuma desconfiança interrompa a melodia de seu salmo de expectação, e melhor ainda:
“Para a exaltação sonora do amor divino,
Peça a cada corda que desperte.”
Que plenitude de verdade há nessas poucas palavras: “Grandes coisas me há feito o Poderoso”. É um texto a partir que um espírito glorificado no céu poderia pregar um sermão sem fim. Peço-lhe que guarde os pensamentos que lhe sugeri dessa pobre maneira, e que trate de chegar ao sítio onde Maria esteve, gozando de santa exultação. A graça é grande, porem também o seu doador o é – o amor é infinito, e também o coração do qual brota – a bem-aventurança é indescritível, porem a sabedoria divina que a planejou desde tempos antigos também a é. Que nossos corações se apropriem do “Magnificat”, o “faça-se” da Virgem, e louvem ao Senhor muito alegremente nessa hora.
Ademais, posto que não esgotamos a melodia – a santidade de Deus esfriou o ardor do gozo do crente – porem não foi assim no caso de Maria. Ela se alegra nele: “Santo é seu nome”. Incorpora esse brilhante atributo em seu cântico. Santo Senhor, quando esqueço meu Salvador, o pensamento de Sua pureza me faz estremecer – quando estou onde Moises esteve no santo monte de Sua Lei, estou espantado e tremendo! Para mim, consciente de minha culpa, nenhum ribombar poderia ser mais terrível do que o hino do serafim: “Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos exércitos!” Que é Sua santidade senão fogo consumidor que tem que destruir-me completamente, sendo eu um pecador? Se os céus não são puros diante de Seus olhos, e notas necedade em Seus anjos, quanto menos então pode suportar ao homem vão e rebelde, nascido de mulher? Como pode o homem ser puro e como podem Seus olhos o ver sem rapidamente consumir-lhe em Sua ira? Porem, ó Tu, o Santo de Israel, quando meu espírito está no Calvário e pode ver Sua santidade vindicar-se a si mesma nas feridas do homem que nasceu em Belém, então meu espírito se alegra nessa gloriosa santidade que uma vez foi seu terror. Inclinou-se até o homem o três vezes santo Deus e assumiu a carne do homem? Então, em verdade, há esperança! Um santo Deus suportou a sentença que Sua própria lei pronunciou contra o homem? Esse Deus santo encarnado estende Suas feridas e intercede por mim? Então, alma minha, a santidade de Deus deve ser uma consolação para você. Extrairei águas vivas desse poço sagrado, e agregarei a todas minhas notas de júbilo essa outra: “Santo é seu nome”. Ele jurou por Sua santidade, e não mentirá, guardará Seu pacto com Seu ungido e com Sua semente para sempre.
Quando, como sobre asas de anjos, nos remontamos ao céu em santo louvor, a perspectiva se abre debaixo de nós – de igual maneira, quando Maria se cinge com a asa poética, olha ao longo das passagens do passado, e contempla os poderosos atos de Jeová nas eras transcorridas há muito tempo. Observem como a melodia adquire majestade – trata-se mais bem do vôo de Ezequiel, o de asas de águia, que da agitação da tímida pomba de Nazaré. Ela canta: “E a Sua misericórdia é de geração em geração sobre os que o temem.”. Olha mais além do cativeiro, aos dias dos reis, a Salomão, a Davi, através dos juízes e até chegar ao deserto, e através do mar Vermelho para Jacó, a Abraão, e segue seu transcorrido até que detendo-se na porta do Éden, ouve o som da promessa: “A semente da mulher ferirá a cabeça da serpente”. Quão magnificamente resume o livro das guerras do Senhor, e repassa os triunfos de Jeová: “Com o seu braço agiu valorosamente; Dissipou os soberbos no pensamento de seus corações.” Quão deleitávemente a misericórdia é mesclada com o juízo no seguinte canto de seu salmo: “Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos.”
Meus irmãos e irmãs, também cantemos do passado, glorioso em fidelidade, temível em juízo, fecundo em portentos. Nossas próprias vidas nos proporcionarão um hino de adoração. Falemos das coisas que experimentamos tocantes ao Rei. Estávamos famintos e Ele nos encheu de coisas boas – encurvou-se sobre o monturo com o mendigo, e nos entronizou entre os príncipes – fomos sacudidos pela tempestade, porem com Eterno Piloto ao timão, não tivemos medo de naufragar – fomos lançados dentro de um forno ardente, mas a presença do Filho do Homem apaziguou a violência das chamas.
Proclamem, ó vocês, filhas da música, a longa história da misericórdia do Senhor para com Seu povo nas gerações já passadas. As muitas águas não puderam apagar Seu amor, nem os rios afogá-lo – a perseguição, a fome, a nudez, os perigos, a espada, nada disso separou aos santos do amor de Deus, que é em Cristo nosso Senhor. Os santos, sob a asa do Altíssimo, sempre estiveram seguros. Quando foram mais assediados pelo inimigo, moraram em perfeita paz: “Deus é nosso amparo e fortaleza, nosso presente auxílio nas tribulações”. Atravessando às vezes a onda cor vermelha de sangue, o barco da Igreja não se desviou jamais de seu predestinado caminho de progresso. Cada tempestade favoreceu-a – o furação que buscava sua ruína se viu obrigado a levar ela adiante mais rapidamente. Sua bandeira desafiou nesses mil e oitocentos anos a batalha e a agitação, e não teme para nada o que possa sobrevir ainda. Porem, vejam aqui, aproxima-se ao porto – o dia está amanhecendo quando darão adeus às tormentas – as ondas se acalmaram sob ela – o repouso longamente prometido está à mão – Jesus mesmo encontra-se com ela, caminhando sobre a águas, entrará em seu porto eterno e todos os que vão a bordo cantarão de gozo com seu Capitão e triunfarão e cantarão vitória por meio Daquele que a amou e foi seu libertador.
Quando Maria afinou assim seu coração para glorificar a Deus nela por Suas maravilhas do passado, enfatizou particularmente a nota da eleição. A nota mais alta da escala de meu louvor é alcançada quando minha alma canta: “Eu amo a Ele, porque Ele me amou primeiro”. Kent o expressa muito bem dessa forma:
“Um monumento à graça.
É um pecador salvo pelo sangue;
Eu rastreou as correntes do amor
Até sua fonte: Deus;
E em Seu poderoso peito veio,
Eternos pensamentos de amor por mim.”
Dificilmente poderíamos voar mais alto do que a fonte do amor no monte de Deus. Maria sustenta a doutrina da eleição em seu cântico: “Depôs dos tronos os poderosos, E elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, E despediu vazios os ricos.”. Ai percebemos à graça que distingue, a consideração que discrimina; ai, a alguns se lhes permite que pereçam; ali estão outros, os menos merecedores e os mais obscuros, que são feitos objetos especiais do afeto divino.
Não tenha medo de ressaltar essa excelsa doutrina, amado irmão no Senhor. Permita-me assegurar que quando sua mente está mais triste e caída, descobrirá que isso é um vaso que contêm o mais delicioso medicamento. Aqueles que duvidam dessas doutrinas, ou que as arrojam à fria sombra, perdem dos mais ricos ramos de Escol – perdem dos vinhos refinados e dos grossos tutanos, porem vocês que, em razão dos anos, tiveram seus sentidos exercitados para discernir entre o bem e o mal, vocês sabem que não existe mel como esse, não há uma doçura comparável a ele. O mel no bosque de Jonatas, quando era tocado, iluminava os olhos para ver, porem esse é o mel que iluminará seu coração para amar e aprender os mistérios do reino de Deus.
Comam, então, e não tenham medo de se enjoarem – alimentem-se dessa seleta delicia, e não tenham medo de se cansarem dela, pois quanto mais saibam, mais desejarão saber, quanto mais cheia estiver sua alma, mais desejarão que sua mente seja expandida, para poder compreender mais o amor de Deus que é eterno, imperecível e discriminador.
Porem, farei mais um comentário sobre esse ponto. Vocês vêem que Maria não terminou seu cântico até não ter chegado ao pacto. Quando se remonta até um ponto tão alto como a eleição, demore-se em seu monte irmão, que é o pacto da graça. No último verso de seu cântico, ela canta: “Como falou a nossos pais, para com Abraão e a sua posteridade, para sempre”. Para ela, esse era o pacto – para nós, que temos uma luz mais clara, o antigo pacto feito na câmara do conselho da eternidade, é o tema do maior deleite. O pacto com Abraão, em seu melhor sentido, só uma copia menor desse pacto de graça feito com Jesus, o Pai eterno dos fiéis, antes que os céus azuis fossem estendidos. Os compromissos do pacto são suaves almofadas para uma cabeça dolorida – os compromissos do pacto com a fiança, Cristo Jesus, são os melhores sustentadores de um espírito trêmulo:
“Seu juramento, Seu pacto, Seu sangue,
Sustentam-me na feroz inundação;
Quando todo apoio terrenal caia,
Segue sendo minha fortaleza e meu sustento.”
Se Cristo efetivamente jurou levar-me à glória, e se o Pai jurou entregar-me ao Filho para formar parte da infinita recompensa pela aflição de Sua alma, então, alma minha, enquanto Deus mesmo não seja infiel, enquanto Cristo não cesse de ser a verdade, enquanto o conselho eterno de Deus não se converta em mentiroso e o vermelho pergaminho de Sua eleição não seja consumido pelo fogo, você está segura. Descanse, então, em perfeita paz, venha o que venha; tire sua harpa de cima dos salgueiros e que seus dedos não parem de tocá-la seguindo os acordes da mais rica harmonia. Ó, que recebamos graça de principio à fim para nos unirmos a Maria em seu cântico.
II. Em segundo lugar, MARIA CANTA DOCEMENTE. Ela louva a Deus com todo seu coração. Observem como adentra até o centro do tema. Não há um prefácio, mas sim “Engrandece minha alma ao Senhor; meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”. Quando algumas pessoas cantam, dão a impressão de que têm medo de ser ouvidas. Nosso poeta declara:
“Com todos meus poderes de coração e língua
Louvarei meu Criador em meu canto;
Os anjos ouvirão as notas que elevo,
Aprovarão o canto, e se unirão no louvor.”
Temo que os anjos frequentemente não escutam esses pobres sussurros, fracos e desfalecentes, que muitas vezes brotam de nossos lábios simplesmente pela força do costume. Maria é todo coração – evidentemente sua alma está ardendo – enquanto ela medita, o fogo arde, logo expressa sua emoção com palavras. Nós também devemos recolher nossos pensamentos dispersos, e devemos despertar nossos poderes adormecidos para louvar ao amor redentor. Maria usa uma nobre palavra: “Engrandece minha alma ao Senhor”. Eu suponho que isso significa: “Minha alma se esforça por engrandecer a Deus por meio do louvor”. Ele é tão grande, como poderia ser em Seu ser – minha bondade não pode magnificar-lhe, porem minha alma deseja engrandecer a Deus nos pensamentos dos demais, e engrandecê-lo em meu próprio coração. Eu desejaria dar ao cortejo de Sua glória um maior alcance – eu desejaria refletir a luz que Ele me há dado – quisera converter em amigos a Seus inimigos, eu desejaria converter os pensamentos ásperos sobre Deus em pensamentos de amor. “Engrandece minha alma ao Senhor”. O velho Trapp disse: “minha alma desejaria criar um maior espaço para ele”. É como se Maria quisesse absorver mais de Deus, como Rutherford, quando disse: “Ó, que meu coração fosse tão grande como o céu, para que eu pudesse conter a Cristo nele!” – e logo, se coloca um ‘porem’ a si mesmo: “Porem, os céus e a terra não podem contê-Lo. Ó, que tivera um coração tão grande que sete céus, para poder assim conter a todo o Cristo dentro dele”. Verdadeiramente, esse é um desejo maior do que poderíamos jamais esperar que fosse cumprido, no entanto, nossos lábios cantarão ainda: “Engrandece minha alma ao Senhor.” Ó, se pudesse coroá-lo, se pudesse colocá-lo mais acima! Se o fato de que fosse queimado na fogueira pudesse acrescentar tão somente uma fagulha de mais luz para Sua glória, eu seria feliz por sofrê-lo. Se o fato de que eu fosse aplastado pudesse levantar um tantinho mais a Jesus, feliz seria a destruição que acrescentaria a Sua glória! Tal é o espírito de entrega do cântico de Maria.
Mais, seu louvor é muito alegre: “Meu espírito se alegra em Deus meu Salvador.” A palavra no grego é muito notável. Eu creio que é a mesma palavra que é usada na passagem: “Folgai nesse dia, exultai” (Lucas 6:23). Acostumávamos ter uma antiga palavra em inglês que descrevia a um certo baile de celebração, “a galliard” - uma galharda. Era um baile no que se dava saltos[1]; os antigos comentaristas o chamam um levante. Maria, de fato, declara: “Meu espírito haverá de dançar como Davi diante da arca, dará saltos, pulará, saltitará e regozijará em Deus meu Salvador”. Quando nós louvamos a Deus, não deveria ser com notas dolorosas ou melancólicas. Alguns de meus irmãos louvam sempre a Deus com a nota mais baixa, ou em profundo, profundo baixo – não podem se sentir santos enquanto não estejam melancólicos. Por que alguns homens não podem adorar a Deus exceto com uma cara larga? Os conheço por sua simples maneira de caminhar quando eles vêem à adoração: que passo terrível o deles! Não entendem o Salmo de Davi:
“A seus átrios, com gozos desconhecidos,
As sagradas tribos apelam.”[2]
Não, esses indivíduos sobem à casa de Seu Pai como que se dirigissem à cadeia, e adoram a Deus nos domingos como se fosse o dia mais triste da semana! Se diz de um certo habitante das zonas altas da Escócia – quando os habitantes dessa região eram muito piedosos – que uma vez esse tal foi a Edimburgo, e quando retornou de sua viagem comentou que tinha visto um terrível espetáculo ao domingo, pois tinha visto a certas pessoas em Edimburgo que iam à igreja com rostos alegres. Ele considerava que era perverso achar-se feliz aos domingos. Esse mesmo conceito existe nas mentes de certas boas pessoas daqui – imaginam que quando os santos se reúnem devem se sentar, e experimentar uma pequena e cômoda infelicidade e só um pouco de deleite. Em verdade, gemer e abater-se não é caminho designado para adorar a Deus. Devemos tomar a Maria como uma norma. Eu a recomendo todo ano como um exemplo para os que estão turbados e têm um coração desfalecente. “Meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”.
Cessem de se alegrarem nas coisas sensuais, e não tenham nenhuma comunhão com os prazeres pecaminosos, pois todo esse regozijo é maligno, mas vocês não podem se alegrar em demasia no Senhor. Eu creio que o problema de nossa adoração pública é que somos demasiadamente sóbrios, frios e formais. Eu não admiro precisamente os abruptos rompantes de nossos amigos metodistas primitivos quando se desenfreiam, mas eu não colocaria nenhuma objeção a ouvir uma “ALELUIA!” dito de todo coração de vez em quando. Uma entusiasta explosão de exultação poderia acalentar nossos corações – o grito de “Glória!” poderia acender nossos espíritos.
Isso sei, que não me sinto mais pronto para a verdadeira adoração do que quando estou pregando no País de Gales, quando ao longo de todo o sermão o pregador é auxiliado, mais que interrompido, pelos gritos de: “Glória a Deus!” e “Bendito seja Seu nome!” Vamos, nesse momento o sangue começa a arder, e a alma de um é sacudida, e essa é a verdadeira maneira de servir a Deus com alegria. “Alegrem-se no Senhor, sempre, Outra vez digo: Regozijai-vos!” “Meu espírito se alegra em Deus meu Salvador.”
Em terceiro lugar, Maria canta docemente porque canta confiadamente. Não para a perguntar-se: “Tenho algum direito de cantar?”, mas bem diz: “Engrandece mina alma ao Senhor – e meu espírito de alegra em Deus meu Salvador. Porque olhou para baixeza de Sua serva”. O “se” é um triste inimigo de toda felicidade cristã – “porem”, “porventura”, “dúvida”, “conjecturar”, “suspeitar”, esses constituem uma raça de salteadores de meio de estrada que espiam aos pobres peregrinos tímidos e lhes roubam o dinheiro de seus gastos. As harpas pronto desafinam e quando sopra o vento desde o reduto da dúvida, as cordas se rompem ao menor toque. Se os anjos do céu pudessem abrigar alguma dúvida, isso converteria o céu em um inferno. “Se és Filho de Deus” foi a arma covarde brandida pelo antigo inimigo contra nosso Senhor no deserto. Nosso grande inimigo conhece bem qual arma é a mais perigosa.
Cristão, coloque o escudo da fé sempre que veja a adaga envenenada pronta a ser usada contra você. Temo que alguns de vocês alimentam suas dúvidas e temores. Bem poderiam incubar jovens víboras e criar um basilísco. Pensam que é um sinal de graça terem dúvidas, ainda que melhor é um sinal de debilidade. Se duvidam da promessa de Deus, isso não demonstra que não possuem nada de graça, porem demonstra, em verdade, que precisam de mais graça, pois se tivessem mais graça, receberiam a Palavra de Deus tal como Ele a dá, e se diria de vocês como se disse de Abraão, que “tampouco duvidou, por incredulidade, da promessa de Deus, mas sim que se fortaleceu em fé, dando glória a Deus, plenamente convencido de que era também poderoso para fazer tudo o que havia prometido.” Que Deus lhes ajudem a desfazerem-se de suas dúvidas. Ó, essas são coisas diabólicas! Essa é uma palavra muito dura? Encantar-me-ia encontrar uma mais dura. São criminais, são rebeldes que buscam roubar de Cristo Sua glória – são traidoras que lançam lama sobre o escudo de armas de meu Senhor. Ó, são vis traidoras – a alcem sobre a forca que deve ser tão alta como a de Hamã – lancem-nas por terra, e deixem que apodreçam como carniça, ou enterrê-las com o enterro de um asno! As dúvidas são aborrecidas por Deus e também devem ser aborrecidas pelos homens. São cruéis inimigas de suas almas, lesionam a sua utilidade e os despojam em todos os sentidos. Eliminem-nas com a espada do Senhor e de Gideão! Por fé na promessa busquem lançar fora esses cananeus e possuam a terra. Ó, vocês, homens de Deus, falem com confiança, e cantem com sagrado júbilo.
Há algo mais que confiança em seu cântico. Maria canta com grande familiaridade, “Engrandece minha alma ao Senhor, e meu espírito se alegra em Deus meu Salvador... Porque me fez grandes coisas o Poderoso; Santo é seu nome”. Esse é o cântico de alguém que se aproxima muito de perto de seu Deus em amorosa intimidade. Eu sempre tenho uma ideia quando escuto a leitura da liturgia: que é a adoração de um escravo. As palavras e as frases não são um problema para mim. Talvez, de todas as composições humanas, o serviço litúrgico da Igreja da Inglaterra seja, com algumas exceções, o mais nobre, porem só é bom para escravos, ou, supondo o melhor, para súditos. Ao longo de todo o serviço, um sente que há um cerco que rodeia a montanha, tal como no Sinai. Sua “litania” é o lamento de um pecador, e não o feliz triunfo de um santo. O serviço gera uma escravidão, e não contêm nada do espírito confiante da adoração. Contempla ao Salvador desde muito longe, como alguém que há de ser temido mais bem que amado, e que deve ser considerado temível em lugar de deleitar-se Nele. Não tenho dúvida de que se adéqua àqueles cuja experiência os conduz a colocar os dez mandamentos próximos da mesa da comunhão, pois evidenciam por isso que seus tratos com Deus são ainda sobre os termos de servos e não de filhos.
No que a mim diz respeito, eu preciso de uma forma de adoração na que possa aproximar-me a meu Deus, e acercar-me inclusive a Seus pés, expondo meu caso diante Dele, e ordenando minha causa com argumentos, falando com Ele como um amigo fala com seu amigo, ou um filho fala com seu pai – de outra forma, a adoração vale muito pouco para mim.
Nossos amigos da Igreja Episcopal, quando vêem aqui, são naturalmente impactados pelo nosso serviço, o vendo como irreverente porque é muito mais familiar e atrevido que o seu. Temos de nos guardar cuidadosamente de ter que merecer realmente essa critica, e então não deveríamos temê-la, pois uma alma renovada deseja vivamente precisamente esse tratamento que o formalista chama irreverente. Falar com Deus como meu Pai, tratar com Ele como com Um que cujas promessas são verdadeiras para mim, e a quem eu, um pecador lavado no sangue e vestido com a justiça perfeita de Cristo, posso vir com valor, sem ter que ficar ao longe. Eu digo que isso é algo que o adorados dos átrios exteriores não pode entender.
Há alguns de nossos hinos que falam de Cristo com tal familiaridade que o crítico impassível diz: “Não gosto de tais expressões. Eu não poderia cantar elas”. Estou plenamente de acordo contigo, senhor crítico, já que a linguagem não lhe conviria bem a você, posto que é um estranho, porem, um filho pode dizer mil coisas que um servo não pode. Lembro que um ministro alterou um de nossos hinos que diz:
“Que recusem cantar
Os que jamais conheceram nosso Deus;
Porem, os favoritos do Rei celestial
Podem expressar livremente seus gozos”.
Ele mudou dessa maneira:
“Porem, os SÚDITOS do Rei celestial.”
Sim, e quando o expressou, eu pensei: “isso é correto, você está cantando o que sente – você não sabe nada da graça que discrimina nem das manifestações especiais, e portanto, se apega a seu nível inato, que é de súdito do rei celestial”. Porem, ó, meu coração necessita de uma adoração que possa sentir e expressar o sentimento de que sou um favorito do rei celestial, e que portanto, posso cantar de Seu amor especial, de Seu favor manifesto, de Suas doces relações e de Sua misteriosa união com minha alma. Nunca estará bem enquanto não lhe faça a pergunta: “Senhor, como é que se manifesta a nós, e não ao mundo?” Existe um segredo que nos é revelado, e que não é revelado ao mundo exterior – um entendimento que as ovelhas recebem, porem que as cabras não recebem. Eu apelo a qualquer de vocês que durante a semana ocupam uma posição oficial: um juiz, por exemplo. Você tem um assento no tribunal e não está revestido de uma insignificante dignidade quando está ai. Quando chega em casa, você tem um pequenino que tem muito pouco medo de sua investidura de juiz, ainda que tem muito amor por sua pessoa, e que sobe em seus joelhos, lhe beija na bochecha e lhe diz mil coisas que são adequadas e corretas porque saem dele, porem que você não toleraria na corte se proviessem de qualquer outro ser vivente. Essa parábola não necessita de interpretação.
Quando leio algumas das orações de Martinho Lutero, escandalizo-me, porem argumento comigo mesmo assim: “É certo que não posso falar com Deus da mesma maneira que Lutero, porem, talvez, Lutero sentiu e compreendeu sua adoção mais do que eu o faço, portanto, não era menos humilde porque fosse mais arrojado. Poderia ser que usou expressões que estavam fora de lugar na boca de qualquer homem que não tivesse conhecido ao Senhor como ele o fez.”
Ó, meu amigo, cante nesse dia de nosso Senhor Jesus Cristo, como de alguém próximo a nós. Acerque-se a Cristo, leia Suas feridas, mete a mão em Seu lado, e coloque seu dedo no sinal dos cravos, e logo seu canto adquirirá uma sagrada doçura e uma melodia que não se pode conseguir em nenhuma outra parte.
Devo concluir observando que ainda que seu cântico era tudo isso, no entanto, quão humilde foi, em verdade, e que repleto de gratidão. Os papistas a chamar: “Mãe de Deus”, porem ela não sussurra jamais tal coisa em seu cântico. Não, melhor, ela diz: “Deus meu Salvador” – justo as mesmas palavras que o pecador que as fala poderia usar, e tais expressões como as que vocês, pecadores, que estão escutando-me, poderiam usar também. Maria necessita de um Salvador – sente que o necessita e sua alma se alegra porque há um Salvador para ela. Ela não fala como se pudesse se recomendar diante Dele, mas que espera ser aceita no amado. Procuremos, então, que nossa familiaridade esteja mesclada sempre com a prostração mais humilde de espírito, quando lembramos que Ele é Deus sobre tudo, bendito para sempre, e nós somos nada senão pó e cinzas. Ele enche todas as coisas, e nós somos menos que nada e vaidade.
III. O último deveria ser a pergunta: DEVE CANTAR SOZINHA? Sim, deve fazê-lo, se a única musica que podemos trazer é a dos deleites carnais e dos prazeres mundanos. Haverá muita musica amanhã que não encaixaria com a sua. Haverá muito júbilo amanhã, e muita risada, mas temo que a maior parte disso não iria de acordo com o cântico de Maria. Não será: “Engrandece minha alma ao Senhor; e meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”. Não desejaríamos impedir as brincadeiras dos espíritos animais nos jovens nem nos velhos – não moderaríamos no mais mínimo seu júbilo das misericórdias de Deus, entanto que não quebrantem seu mandamento por conta do desenfreio, da bebedeira ou o excesso; porem, ainda assim, quando praticaram a maior parte desse exercício corporal, de pouca se aproveita, pois é só o desfrute da hora passageira e não a felicidade do espírito que é permanente – e, portanto, Maria deve cantar sozinha no que concerne a vocês. A alegria da mesa é demasiadamente baixa para Maria; o gozo da festa e da família é rasteiro comparado com o seu.
Porem, Maria deve cantar sozinha? Certamente não, se nesse dia qualquer de nós, pela simples confiança em Jesus, pudesse receber a Cristo para ser seu. O Espírito Santo lhe conduz a dizer nesse dia: “Confio minha alma a Jesus?”
Meu querido amigo, então você concebeu a Cristo – no melhor sentido e no sentido místico da palavra, Cristo Jesus é concebido em sua alma. O compreende como o que carregou o pecado e quitou a transgressão? Pode ver a Jesus sangrando como o Substituto dos homens? O aceita como tal? Coloca toda sua fé na dependência no que Ele fez, no que é e no que faz? Então, Cristo é concebido em você, e pode prosseguir seu caminho com toda essa alegria que Maria conheceu – e eu estava quase pronto a dizer com algo mais – pois a concepção natural do santo corpo do Salvador foi, como tema de congratulação, só a décima parte se lhe compara com a concepção espiritual do santo Jesus dentro de seu coração, quando Ele seja em você a esperança da glória.
Meu querido amigo, se Cristo é seu, não há cântico na terra tão sublime e tão santo para ser cantado – e mais, não há nenhum comovedor cântico procedente dos lábios dos anjos, nem nenhuma nota comovedora da língua do arcanjo, aos que você não pudesse unir-se. Mesmo nesse dia, o mais santo, o mais feliz, o mais glorioso das palavras, dos pensamentos e das emoções, lhe pertencem. Usá-los! Que Deus lhe ajude a desfrutar de tudo isso, e Dele seja o louvor e teu seja o consolo para sempre. Amém
John Piper fala sobre o porquê Deus nos criou com base em Isaías 43:6,7 e 1 Coríntios 10:31. Ele afirma:
Deus nos cria para Sua glória, ou seja, para magnificar, revelar e exibir a sua grandeza, e, então, Ele nos diz para vivermos dessa forma, vivermos de modo que a grandeza de Deus seja exibida. Então, temos o desígnio de Deus ao nos criar para Sua glória, e nosso dever fluindo disso.
Meditando sobre o assunto
Para tornar esta série de devocionais mais participativa, meditaremos sobre alguns pontos em cada devocional.
John Piper afirma que todas as coisas foram criadas para a glória de Deus e devemos fazer tudo para este fim. Como isso afeta a sua forma de viver? Ou nas palavras de John Piper:
Como eu posso ir trabalhar hoje, como posso limpar minha casa, como posso educar os meus filhos hoje para glória de Deus? Como posso comer pizza ou beber suco de laranja para a glória de Deus?
O que você acha?
Transcrição
Bem vindo ao nosso devocional de cinco dias sobre a glória de Deus. Deixe-me falar o que faremos nestes cinco dias e, depois, começaremos o primeiro devocional. Falaremos sobre o porquê Deus nos criou. Em segundo lugar, amanhã, falaremos sobre a nossa falha de viver de acordo com o porquê Ele nos criou. Terceiro, vamos falar sobre Cristo vindo ao mundo revelar a glória de Deus para nos salvar de nossa falha em glorificar a Deus. Quarto, como se parece uma vida que glorifica a Deus uma vez resgatada por Ele. E quinto, qual é a consumação de todas as coisas para a glória de Deus. Então, todos os pontos têm a ver com a glória de Deus.
Então, aqui está o primeiro para você considerar hoje. Deus nos criou para Sua glória. Isto está em Isaías 43:6-7: “Trazei meus filhos de longe e minhas filhas, das extremidades da terra, a todos os… que criei para minha glória.” O que não significa que Ele criou para aumentar Sua glória, mas para revelar e oferecer Sua glória para nós como um presente para nossa alegria. O que significa que, se você for a 1 Coríntios 10:31, um texto que meus que meus pais sempre compartilhavam comigo quando eu era criança, “Johnny, quer você coma, beba ou faça qualquer outra coisa, faça tudo para a glória de Deus.”
Então, agora, temos o Seu propósito: Deus nos cria para Sua glória, ou seja, para magnificar, revelar e exibir a sua grandeza, e, então, Ele nos diz para vivermos dessa forma, vivermos de modo que a grandeza de Deus seja exibida. Então, temos o desígnio de Deus ao nos criar para Sua glória, e nosso dever fluindo disso.
Então, a pergunta chave que podemos deixar para este primeiro dia talvez seja: Como eu posso ir trabalhar hoje, como posso limpar minha casa, como posso educar os meus filhos hoje para glória de Deus? Como posso comer pizza ou beber suco de laranja para a glória de Deus? A resposta certamente seria que ao confiarmos em Deus mostramos que Ele é confiável e em cada área de nossa vida estaremos confiando nele hoje. Somos apenas criancinhas, e Ele é Todo-Suficiente, e quando confiamos nele mostramos que Ele é grande. E Ele o fez para alegrar-se em Sua glória, e eu tento deixar isso claro em tudo o que digo, que Deus é mais glorificado em você, quando você está mais satisfeito nele. Então, eu penso que o seu maior desafio hoje é estar o mais satisfeito em Deus.
Então, este é meu desafio e minha oração por você: que Deus lhe conceda hoje a visão de que você foi feito para Sua glória, de que seu dever mais profundo e fundamental é viver de uma forma que O revele como glorioso, e que a forma principal de fazer isso é lutar por maior satisfação na glória dele, para que isso subjugue as outras satisfações pecaminosas.
Eclesiastes 5:13-6:12 -
A amargura do desapontamento
No capítulo quarto, e na metade deste capítulo quintão de Eclesiastes, ocupamo-nos mais com o viver de maneira sensata no mundo como o encontramos (inclusive no mundo de nossas obrigações religiosas) do que com a preocupação quanto a se estamos conseguindo alguma coisa ou não. O problema ainda continua, refletido duas vezes no comentário “também isto é vaidade” (4:16; 5:10); agora ele torna-se novamente o centro das atenções enquanto Coelet cita algumas das amargas anomalias da vida. Ele conclui o capítulo6 – e com isso a primeira metade do livro – enfatizando a pergunta que aparentemente já havia respondido antes: “Pois quem sabe o que é bom para o homem... debaixo do sol?”
O choque
5: 13 Grave mal vi debaixo do sol: as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano.
14 E, se tais riquezas se perdem por qualquer má aventura, ao filho que gerou nada lhe fica na mão.
15 Como saiu do ventre de sua mãe, assim nu voltará, indo-se como veio; e do seu trabalho nada poderá levar consigo.
16 Também isto é grave mal: precisamente como veio, assim ele vai; e que proveito lhe vem de haver trabalhado para o vento?
17 Nas trevas, comeu em todos os seus dias, com muito enfado, com enfermidades e indignação.
Um exemplo em miniatura coloca-nos agora face a face com a frustração; este autor prefere nos apresentar exemplos da própria vida e não apenas abstrações. Aqui, então, temos um homem que perde todo o seu dinheiro de um só golpe, deixando a família desamparada. Isto até teria sentido se fosse um castigo para negócios ilícitos (“os bens que facilmente se ganham” e que merecem desaparecer, Pv 13:11), ou se fosse a fortuna ganha em jogos de azar[1] em vez das economias de um pai de família; ou, então, se fosse dinheiro perdido no jogo e não um fracasso nos negócios.[2] Mas, na verdade, trata-se de dinheiro ganho com trabalho e preocupações. A vida dele foi duplamente desperdiçada, primeiro ganhando, depois perdendo. E, se este é um caso extremo, também nós enfrentamos algo parecido: todos nós partiremos tão nus quanto chegamos. “Mas isto não é justo!”, poderíamos dizer. A reação do próprio Coelet não é tão impetuosa, pois ele está principalmente destacando o que acontece, e não o que deveria acontecer, em u mundo no qual não podemos ditar ordens nem criar raízes. “Um mal fatal”[3] talvez seja a tradução mais aproximada de sua expressão. Foi assim que ele apresentou o assunto (v.13); e agora ele repete: “é grave mal... e que proveito lhe vem de haver trabalhado para o vento?” (v.16).
Neste ponto convém lembrar que esse homem talvez quisesse da vida mais do que ela lhe podia dar. Se os seus planos eram feitos apenas com base no que estava ao seu alcance e no que lhe prometia alguma segurança, então ele estava olhando na direção errada. Assim o parágrafo final vai nos acalmar, falando agora da vida em termos muito diferentes.
Um caminho mais excelente
5: 18 Eis o que eu vi: boa e bela coisa é comer e beber e gozar cada um do bem de todo o seu trabalho, com que se afadigou debaixo do sol, durante os poucos dias da vida que Deus lhe deu; porque esta é a sua porção.
19 Quanto ao homem a quem Deus conferiu riquezas e bens e lhe deu poder para deles comer, e receber a sua porção, e gozar do seu trabalho, isto é dom de Deus.
20 Porque não se lembrará muito dos dias da sua vida, porquanto Deus lhe enche o coração de alegria.
À primeira vista isto talvez pareça um mero elogio à simplicidade e à moderação. Mas, de fato, a palavra-chave é Deus, e o segredo da vida que nos é apresentado é a abertura para com ele: uma disposição de aceitar tudo como vindo do céu, quer seja trabalho ou riqueza, ou ambos. Isto é mais do que boa e bela cousa (v.18): mais literalmente, é “uma coisa boa que é bela”. Novamente, uma nota positiva aparece, e no final do capítulo captamos um vislumbre do homem por quem a vida passa rapidamente, não porque ela é curta e sem sentido, mas porque, pela graça de Deus, ele a acha completamente arrebatadora. Este será o tema dos capítulos finais; antes, porém ainda há algo mais a ser explorado na experiência humana e em suas duras realidades.
Tantalização
6: 1 Há um mal que vi debaixo do sol e que pesa sobre os homens:
2 o homem a quem Deus conferiu riquezas, bens e honra, e nada lhe falta de tudo quanto a sua alma deseja, mas Deus não lhe concede que disso coma; antes, o estranho o come; também isto é vaidade e grave aflição.
3 Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele;
4 pois debalde vem o aborto e em trevas se vai, e de trevas se cobre o seu nome;
5 não viu o sol, nada conhece. Todavia, tem mais descanso do que o outro,
6 ainda que aquele vivesse duas vezes mil anos, mas não gozasse o bem. Porventura, não vão todos para o mesmo lugar?
Imediatamente deparamo-nos com o fato de que o “poder” de desfrutar os dons de Deus, que nos foi apresentado em 5:19, é em si mesmo um dom que pode ou não nos ser concedido. Podemos ser privados dele de diversas maneiras. Em 5:13ss., temos o fracasso nos negócios: aqui tudo foi sacrificado por um futuro que nunca se concretizou. Para este homem nunca houve uma manha. Mas a vida pode ter longos períodos de brilho e de alegria, e ainda assim sucumbir em trevas, que parecerão ainda mais profundas por causa da luz que desfizeram. O homem do versículo 2, exatamente por ser notável, tem mais a perder do que o lerdo que nunca chega a nada. E ele pode muito bem perder tudo sem ter culpa alguma: é só vir a guerra, a enfermidade ou a injustiça e lançar tudo no colo de outra pessoa. Se ele é atormentado, também o são aqueles que têm riqueza material e pobreza interior, pois o problema não é simplesmente que alguns bens são menos satisfatórios que outros, o que sem dúvida acontece, ou que estes nos são dados escassamente. Uma pessoa pode ter tudo que os homens sonham (o que nos termos do Antigo Testamento significava filhos às dezenas e anos de vida aos milhares) e ainda assim partir sem ser percebido ou lamentado[1] e sem ter satisfação.
A esta altura podemos protestar dizendo que afinal de contas a fida não é tão negra assim para a maioria das pessoas. Normalmente, podemos aceitar as dificuldades junto com as alegrias, achando que a vida decididamente vale a pena ser vivida. É claro que isto é verdade e está muito bem fundamentado, se somos homens de fé como aqueles que conhecemos no final do capítulo cinco. Mesmo que não o sejamos, ainda assim podemos viver satisfeitos, como milhares de pessoas vivem, sem nos preocupar com o significado final das coisas.
A isto Coelet poderia responder, primeiramente, que ele está falando de algumas pessoas e não de todas; e, em segundo lugar, que se nós não estamos interessados em significados e valores, outras pessoas estão – e quem somos nós para descartar essa responsabilidade? Mais uma vez ele nos convida a pensar, e particularmente a pensar através da posição do secularista. Se esta vida é tudo, oferecendo a algumas pessoas mais frustração do que satisfação e nada lhes deixando para dar àqueles que delas dependem; se, além disso, todos igualmente aguardam a sua vez de ser esquecidos (v.6c) então alguns realmente podem invejar os natimortos, que tiveram mais proveito. Em certas horas, Jó e Jeremias teriam concordado com isso fervorosamente (Jó 3; Jr 20:14ss.); e se nós discordamos coma disposição de espírito desses dois homens é porque julgamos suas vidas pelos valores que transcendem a morte e que ultrapassam os sofrimentos e os prazeres desta vida, um critério que o secularista não pode logicamente usar.
Tudo isto estraga qualquer quadro cor-de-rosa que se tenha do mundo; a BLH destaca isso dizendo “tenho visto outra coisa muito triste que acontece neste mundo...” (6:1), e faz 6:2 dizer: “e não está certo”.[1] Coelet está muito longe de afirmar que o homem tem direitos que Deus ignora; antes, o homem tem necessidades que Deus denuncia. Algumas delas, como já vimos, são de um tipo que o mundo temporal não pode nem começar a usufruir, uma vez que Deus “pôs a eternidade no coração do homem” (3:11); outras, mais limitadas, são de um tipo que o mundo pode satisfazer um pouco e por algum tempo; nenhuma delas, porém, com certeza e em profundidade. Se isto é sofrimento e pesa sobre os homens (v.1), também é uma coisa muito salutar. O próprio mundo no-lo diz com a única linguagem que geralmente entendemos: “não é lugar aqui de descanso”.[2]
Mas, por enquanto, não somos incentivados a colher disso qualquer sabedoria, pois a “corrida desenfreada” por si mesma não faz nenhum sentido. Assim o capítulo conclui com uma nota depressiva e incerta, bem adequada ao estado do homem abandonado a si mesmo.
Perguntas sem resposta
6: 7 Todo trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite.
8 Pois que vantagem tem o sábio sobre o tolo? Ou o pobre que sabe andar perante os vivos?
9 Melhor é a vista dos olhos do que o andar ocioso da cobiça; também isto é vaidade e correr atrás do vento.
10 A tudo quanto há de vir já se lhe deu o nome, e sabe-se o que é o homem, e que não pode contender com quem é mais forte do que ele.
11 É certo que há muitas coisas que só aumentam a vaidade, mas que aproveita isto ao homem?
12 Pois quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra? Quem pode declarar ao homem o que será depois dele debaixo do sol?
As idéias e as perguntas do parágrafo final do capítulo voltam a tocar em alguns assuntos que já vimos antes, para consubstanciar o lema do livro, “vaidade de vaidades!”.
A primeira delas (v.7) insiste em um ponto que é tão real para o homem moderno em sua rotina industrial quanto o era para o lavrador primitivo que mal tirava da terra o seu sustento: que se trabalha para comer, a fim de ter forças para continuar trabalhando e continuar comendo. Mesmo quando se gosta do que faz – e do que se come – a compulsão continua existindo. Quem governa, parece, é a boca e não a mente.
Quando objetamos que os homens tema algo mais do que isso, e coisas melhores pelas quais viver, o versículo 8 não permite que tal argumentação fique sem resposta. A sabedoria, por exemplo, pode ser infinitamente melhor que a loucura, como já vimos numa passagem anterior (2:13); mas será que o sábio vive em melhores condições do que o tolo? Materialmente, tanto pode ser que sim como não, embora ele certamente o mereça; e nós já vimos que a morte vai nivelar os dois com total indiferença.[1] Quanto à felicidade, a clareza de visão do homem sábio não se constitui só de alegria: “Porque na muita sabedoria”, como vimos em 1:18, “há muito enfado; e quem aumenta ciência, aumenta tristeza.”
Como que sentindo que nós ainda não estamos muito convencidos, uma vez que avaliamos a qualidade da vida de um homem acima do seu conforto, Coelet faz a prática pergunta de 8b: o que um pobre, por mais respeitado que seja,[2] realmente recebe em troca do seu sofrimento? É uma pergunta honesta. Invertendo um dos conhecidos ditados de R.L Stevenson, para a maioria de nós é melhor chegar do que viajar cheio de esperanças. Esta é a ênfase do versículo 9a, e o seu senso prático não dá lugar a fantasias. O problema é que “chegar”, em qualquer sentido final e realizador, está alem do nosso poder. Qualquer coisa que nós consigamos vai se desfazer como vaidade e correr atrás do vento, quer seja o espírito de iniciativa do pobre, quer seja o sucesso do rico.
Será isto derrotismo ou realismo? Em termos da vida “debaixo do sol” é realismo total, como a argumentação do livro já no-lo provou. Por mais palavras magníficas que multipliquemos acerca do homem ou contra o seu Criador, os versículos 10 e 11 nos fazem lembrar que não podemos alterar a maneira como nós e o nosso mundo foram feitos. Estas coisas já receberam um nome e sabe-se (v.10) o que são, o que é uma outra maneira de dizer, como o restante das Escrituras, que devem a sua existência à ordem de Deus; e esta ordem inclui agora a sentença passada a Adão na Queda. É claro que achamos tal sentença dura e queremos protestar. A idéia de discutir com o Todo-poderoso (VS. 10b,11) fascinava Jó, que a abandonou apenas depois de muito sondar o seu coração;[1] a mesma idéia recebeu uma repreensão clássica em Isaías 45:9ss., com o exemplo do barro dando ao oleiro um conselho intrometido. Mas nós continuamos achando mais fácil exagerar a maneira como achamos que as coisas deveriam ser do que enfrentar a verdade do que elas são.
Mas esta verdade, para que seja a verdade total, deve incluir o que elas estão se tornando e o que vai ser de nós. Uma parte disto, que vamos morrer, já sabemos muito bem; do restante, apenas um pouquinho. Assim o capítulo, no meio do livro, acaba com uma enfiada de perguntas sem resposta. O homem secular, que caminha para a morte e precipita-se ao léu das mudanças, só pode fazer-lhes eco: “Pois quem sabe o que é bom...? Quem pode declarar ao homem o que será depois dele... ?”
É um duplo espanto. Ele fica sem valores absolutos pelos quais viver (“o que é bom?”) e sem nenhuma certeza prática (“o que será?”) para fazer planos.
[1] Veja, por exemplo, Jó, capítulos 9,13 e 23; também 31:35-37; 42:1-6
[2] A expressão “que sabe andar...” pode dar a entender uma vida moral ou socialmente bem conduzida. A palavra aqui usado como pobre é aquela que em outras passagens tende a distinguir o oprimido que busca ajuda de Deus.
[1] O AT pode usar a palavra mal (6:1) em um sentido neutro, para indicar dificuldade ou desastre; cf., por exemplo, Is 45:7 (“o mal”); Am 3:6 (“Sucederá algum mal à cidade...”). semelhantemente, bem nesta passagem é traduzido por “gozar do bem” e “fartar do bem” (5:18; 6:3). A última frase do versículo 2, tão distante do significado de “não está certo” (BLH), é lit. “é uma grave enfermidade” (como na ERC “má envermidade”) ou com o sentido próximo de grande aflição (ERAB).
[1] Esta é a força de não tiver sepultura (6:3); veja Jr 22:18ss
[1] Cf Pv 11:24-26 sobre a infeliz influência disso; e 28:22 sobre sua transitoriedade.
[2] Aventura (v.14) não implica necessariamente em risco; é a palavra traduzida por “trabalho” em 1:13; 3:10; 5:3 (Heb 2), etc.
[3] Lit. “doença”. Implica em problema que é perturbador e esta profundamente enraizado.
Berdiaev e a Servidão
Publicado na Folha de S. Paulo, sexta-feira, 09 de dezembro de 1977
Nicolai Berdiaev, pensador religioso russo, nasceu em 1874 e morreu em 1948. Como alguns dos nobres de seu tempo, associou-se à causa revolucionária, no início do século, lutando contra a tirania czarista. Com a vitória da revolução soviética, Berdiaev foi nomeado professor de filo da Universidade de Moscou, mas foi exilado para Paris em 1922, diante da sua rebeldia em aceitar totalmente a doutrina marxista. Preocupou-se muito com a questão da liberdade individual. Escreveu "A Nova Idade Média", "Solidão e Sociedade" e "Escravidão e Liberdade", de onde foi adaptado este texto (capítulo II).
homem procura a liberdade. Dentro dele existe uma poderosa força que o empurra em direção à liberdade mas, no entanto, o ser humano facilmente despenca na escravidão.
Existem três condições humanas, três diferentes estruturas de consciência, distinguidas sob os nomes de "senhor", "escravo" e "homem livre". Senhores e escravos são correlativos. Não podem existir independentemente. O homem livre, porém, pode existir individualmente -possui suas próprias qualidades, sem estar preso a correlações de oposição.
O mundo da escravidão é o mundo do espírito que se aliena de si mesmo. A exteriorização é a fonte da escravidão, enquanto que liberdade é conseqüência da interiorização. No mundo objetivado em que vivemos, o homem só consegue ser relativamente livre e, não, absolutamente livre. Esta semi-liberdade resulta de conflitos e resistências às necessidades colocadas diante dele. A liberdade resultante da necessidade não é liberdade real, é apenas um elemento na dialética da necessidade.
O homem não deve almejar ser amo e senhor mas aspirar em converter-se em homem livre. A submissão de outros homens traz sempre a própria submissão. Quem escraviza é escravo. O amo é a figura do escravo ao contrário. Prometeu era um homem livre e um libertador, enquanto que o ditador é um escravo escravizador. A aspiração de poder é um desejo vil. Cristo é o protótipo do homem livre, César é o exemplo do escravo do mundo, submetido ao desejo de poder, percebendo apenas a vocação das massas para torná-lo senhor. Mas os servos também derrubam os amos e os césares. Liberdade é libertação não apenas dos opressores mas dos outros escravos igualmente. A condição de senhor é determinada por necessidades externas, não é uma imposição de personalidade, é uma injunção. Somente o homem livre é uma personalidade. Os demais são arranjos.
A queda do homem se expressa na sua inclinação para tiranizar. O homem tende à tirania, seja em grande ou pequena escala, se não como governante, como marido, pai. O homem tiraniza com ódio e com amor. Sobretudo, tiraniza-se a si próprio. Esta autotirania se manifesta através de uma falsa consciência de culpa. Uma consciência de culpa verdadeira tornaria o homem livre. Mas, atormentado por falsas culpas, produz insalubre auto-estima que o tiraniza nos projetos e visões. A exploração do homem pelo homem, que Marx considera o demônio fundamental da sociedade humana, é um derivativo, só ocorre quando se encontram homens dispostos intimamente a exercer este poder. Um homem verdadeiramente livre não deseja comandar os demais, mesmo que as condições o favoreçam. O líder das massas está no mesmo estado de servidão da massa - ele não tem existência autônoma alguma fora da massa. Sem os escravos, não se pode desempenhar o papel de senhor. Sem senhores, não há escravos. Este é um jogo duplo.
César - ditador, herói do desejo imperialista, não pode limitar-se nem interromper. Prossegue insaciavelmente sempre em direção à perdição, é um escravo do seu destino glorioso. Mas o homem pode ser escravizado também através de violências que não são físicas.
Sugestões e condicionamentos a que são submetidos homens desde sua infância fazem deles escravos. Um sistema educacional errôneo pode extrair totalmente de um homem sua capacidade de ser livre nos seus julgamentos e apreciações.
Violações, torturas e assassinatos são fraquezas. Não são poder. Os grandes valores da humanidade são sempre menosprezados. O policial e o sargento são sempre mais fortes do que poetas e filósofos. Escravos e senhores triunfam sempre sobre os homens livres, pois no mundo objetivado e exteriorizado ama-se o finito, ninguém agüenta o infinito.
A verdade está sempre ligada à liberdade. Escravidão está subordinada à negação da verdade. O amor à verdade é o triunfo sobre o medo escravizador. O homem primitivo pulsando dentro do homem moderno é dominado pelo medo. Medo e escravidão são passivos. A vitória sobre a escravidão é obtida com atividade criativa. O homem não vive apenas no tempo cósmico e histórico, mas também no tempo existencial. Vive igualmente fora da objetividade que construiu em torno de si, para aprisionar-se.
Homens livres têm uma responsabilidade: escravos não podem preparar um novo reinado, pois a revolta de escravos estabelece sempre novas formas de escravidão.
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Matta el Meskin:
Comunhão no Amor
trad.: Pe. José Artulino Besen*
A nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. 1Jo 1,3
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II - A Vida no Espírito
A ação espiritual
fundamento de nosso caminho - fundamento que será clarificado tanto para aqueles que apenas estão no início, quanto para aqueles que já tomaram a resolução de continuar a caminhada até o final - é a descoberta de um amor verdadeiro e ardente a Deus, de uma fé livre que não tenha outra preocupação que somente Deus, de um abandono confiante à vontade de Deus, de uma disponibilidade constante em renegar-se a si mesmo. Este fundamento é, na realidade, o conteúdo dos mandamentos de Deus, é o evangelho transformado em regra de vida.
Esses quatro pontos nada mais são do que condições que necessária e integralmente devem fazer parte de nossa existência antes de iniciar o caminho. Contudo, é necessário que nossa alma, de qualquer modo, esteja aberta a eles e deles provemos o desejo. Em si, porém, este fundamento não basta para preparar nosso espírito, nem para garantir um caminho livre de perigos. Alcançar o fim do caminho, atingir o reino de Deus e a união com Deus, reserva ainda numerosas dificuldades.
Por isso, é oportuno apoiar neste fundamento uma ação que lhe seja conatural e que se regenere continuamente. Uma ação que se realize no homem por meio de Deus, uma ação enfrentada através das tentações, as provas e as muitas dores que interna ou externamente atingem o homem, uma ação que se complete durante todo o percurso por meio da penitência, da submissão e do abandono da própria vontade em Deus. Esta ação põe à prova a força e a solidez do fundamento, delas reforçando a capacidade de influência e delas ampliando a base. Por acaso podemos esquecer o modo pelo qual Cristo exprimiu o amor que o fez aceitar os sofrimentos, e como ele aprendeu a obediência através do sofrimento, obediência até a morte? Como, ainda uma vez, seu total abandono foi posto à prova quando exclamou do alto da cruz: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15,34)? Podemos esquecer o modo como ele exercitou a negação de si nos sofrimentos voluntários do Getsêmani: Mas não se faça a minha vontade, e sim a tua (Lc 22,42), até o final do Tudo está consumado (Jo 19,30)?
Vê-se, com clareza que, durante toda a sua vida terrena, Cristo não procurou assentar-se à direita do poder do Pai, mas sim, dele realizar a vontade. Por isso, enquanto estamos a caminho, não nos é lícito fixar o olhar em eventuais favores e dons de Deus, para consegui-los. Nem mesmo os menores favores devem se tornar objeto de exigência em nossa oração. O que nos é pedido é fazer com todo o coração a vontade de Deus e fazer dela a finalidade de nossa ação, com toda submissão e reconhecimento, quaisquer que sejam as situações que Deus permite e as circunstâncias que escolhe para nós, confiantes por estarmos sob sua proteção, aconteça o que acontecer. Sentir uma grande atração pela perfeição cristã: disso é que precisamos. É a única coisa agradável a Deus, mas deve ser uma atração conforme ao seu desejo e às modalidades por ele escolhidas.
A perfeição não é o objeto de um desejo projetado num futuro obscuro, mas uma necessidade do espírito, no exato momento em que se o vive. No hoje, nós possuímos a nossa vontade, as nossas intenções e podemos oferecê-las a Deus; já o futuro, é Deus que o possui totalmente: não dispomos absolutamente dele e por isso nada podemos oferecer-lhe. Quem acredita poder oferecer seu futuro a Deus é semelhante a quem oferta um capital fictício. Nada conhecemos do futuro; não entra na esfera de nosso poder e, espiritualmente, não podemos discerni-lo. O instante que agora vivemos: eis o que possuímos da existência.
No instante presente tomamos consciência de nós mesmos, podemos discernir com clareza os nossos defeitos, mas também as potencialidades não usufruídas. É também no presente que podemos contemplar, com base naquilo que verdadeiramente há em nós, a vontade de Deus relativa àquilo que nos é pedido fazer. A perfeição cristã se concretiza em nós, no hoje, em função da realidade que percebemos: ela, de fato, está em nós e, se quisermos, podemos vê-la com a mesma clareza com que agora vemos o céu sobre nós e a terra sob nós... Pelo contrário, se dermos um passo atrás para examinar nosso passado, encontramo-lo obscurecido e disperso como por um vento que nos atinge e ultrapassa, sem que possamos segui-lo ou saber para onde foi. Se fixarmos lá nossa imaginação, afundamos em nossos pensamentos, vamos ao encontro de nosso fracasso ou, pelo menos, não alcançamos a perfeição. E se buscamos possuir o futuro, nos aprisionamos na previsão de pensamentos nebulosos e obscuros que nos prejudicam a visão e impedem-nos de discernir a perfeição que Deus deseja para nós.
Assim, nossa única esperança está na realidade colocada diante de nós com a finalidade de uma ação consciente; de fato, se perdemos em nós a delicadíssima percepção do presente e por indolência deixamos escapar a ocasião de agir no momento presente, o único oportuno, é a vida inteira que foge de nós.
Todavia, as nossas ações, mesmo se encerram amor, fé e negação de si, abandono à vontade de Deus, de per si não nos levam a um estado de santidade nem nos predispõem a algum dom e, nem mesmo, podem fazer-nos entrar num estado de plena segurança e paz.
E então, quem pode nos dar todos esses dons? Deus! O Deus que não cessa de guiar a alma dócil nos caminhos difíceis e nas provações, de obscuridade em obscuridade, entre as inquietações provocadas que, aparentemente, não têm nenhum sentido. De tal modo, fazendo-a enfrentar a realidade e aceitar provas dolorosas, guia-a e a faz atravessar o drama do mundo e a hostilidade dos malvados; deste modo, Deus a inicia naqueles dons que não chamam a atenção e numa vida de grande espiritualidade.
Os dons de Deus não estão nas mãos dos anjos, nem nas alturas dos céus. Podemos encontrá-los no confronto diário que a cada dia a carne, o mundo e os homens nos impõem. Por si só este confronto não atrai o dom de Deus, mas é por causa de Deus que nos abstemos das culpas da carne e enfrentamos o mal que há no mundo e no homem.
O dom da lucidez espiritual brota somente das trevas obscuras que o espírito atravessa na inquietação e no atordoamento das provas, às voltas com a realidade em que está encoberta a verdade. A alegria verdadeira e a perseverança fiel têm como fonte escondida aqueles sofrimentos e dores que o homem instintivamente rejeita. Mas, graças à paciência, o homem acaba por descobrir que nestas provações havia apenas uma aparente coerção que mascarava uma verdade clara, firme e esplendorosa, no espírito de uma alegria divina, não enganadora. O homem não pode saborear o amor divino na sua graça e imensidão, a não ser depois que seu espírito passou pela provação da hostilidade, do ódio, da provocação dos homens.
Mas, sozinha, a obscuridade não produz luz alguma, assim como a tristeza, sozinha, não traz a alegria, nem ódio produz o amor. Sozinha, a terra não produz as plantas, pois é necessária a semente, semeada com atenção e cuidado. Além disso, para germinar, deve-se pôr sob a terra não uma semente qualquer, mas aquela que contém vida!
De modo análogo, é necessário que o espírito esteja vivo e em estado de perfeita submissão a Deus, para que a mão misericordiosa o ponha na terra das provações, com aqueles cuidados e naquele modo exato que o ajudarão a tirar proveito da obscuridade, da dor, do desprezo e assim permitir-lhe-á comunicar o movimento de vida eterna, na qual se manifestam os atributos da eternidade: alegria, amor, paz e perseverança.
Deste modo, constatamos que, para o homem a caminho, é exigido estar num estado de vigilância constante nos confrontos de toda a realidade de sua vida, voltando o olhar atento àquela verdade onipresente que há nele e que exige ação e fadiga. É pedido ao homem estar pronto para enfrentar toda circunstância que seja causa de mal-estar e de antagonismo, com uma atitude positiva que saiba reconhecer os perigos reais e tirar proveito de tudo aquilo que acontece nele e para ele. É-lhe exigido buscar em toda atitude a união com Deus, submetendo-lhe inteiramente a vontade. Sem inquietação ou perturbação, qualquer que seja a situação, e sem angústia nem hesitação, por mais prolongada que seja a prova. E tudo isso sem precipitar-se em fazer suposições sobre as causas e sem, nem mesmo, apressar-se em querer conhecer as conseqüências.
*Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen.
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